Relações e família

Crónica. O que torna os casais mais inteligentes relacionalmente?

Adoramos a ideia de estar apaixonados, mas mais dificilmente sabemos como nutrir e sustentar a base de uma relação de amor. O amor consiste num enorme convite diário de transformação pessoal que chega até nós e nos propõe que sejamos corajosamente capazes de mergulhar mais fundo dentro de nós mesmos, com o intuito de nos conhecermos e desta forma potenciar o desenvolvimento relacional do casal que somos. É isto que os casais inteligentes relacionalmente fazem. Vejamos como!

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Crónica. O que torna os casais mais inteligentes relacionalmente? Crónica. O que torna os casais mais inteligentes relacionalmente?
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Sílvia Coutinho, psicóloga
Escrito por
Fev. 16, 2024

Talvez um dos grandes desafios que as relações românticas atualmente nos colocam consista em abraçarmos a necessidade de nos responsabilizarmos por sermos capazes de olhar para nós mesmos profundamente e de nos conhecermos melhor.

É cada vez mais imperativa a capacidade de melhor compreendermos as nossas vulnerabilidades, os nossos medos, as nossas histórias, as nossas distorções acerca do mundo, dos outros e de nós mesmos, os nossos padrões de vinculação, as nossas dinâmicas familiares, as nossas narrativas, o nosso carácter, as emoções que sentimos, as percepções que trazemos em nós sobre os conflitos, os nossos gatilhos, o toque, a intimidade, a sexualidade, o poder, os papéis de género e a forma como todos estes elementos fazem parte da pessoa que somos e impactam a forma como nos mostramos no amor.

Torna-se mais imperativa esta capacidade, pois vamos percebendo que a forma de nos relacionarmos hoje em dia, cada vez mais individualista e instantânea, simplesmente não resulta.

A inteligência relacional é a capacidade de compreendermo-nos profundamente no contexto dos nossos relacionamentos íntimos
Sílvia Coutinho, psicóloga Sílvia Coutinho, psicóloga

Saltitamos de relação em relação e quando o sabor intenso da paixão se torna mais suave e nos deparamos com as primeiras dificuldades que uma relação nos coloca, em sabermos estar para o outro ou em estar para a mesma, assobiamos para o lado ou apontamos diretamente o dedo à nossa pessoa parceira como a grande responsável pelos males e problemas com que nos confrontamos.

Tantas e tantas vezes colocamos a cabeça no buraco, desresponsabilizando-nos daquele que também é um dever da nossa parte, que advém do facto de sermos elementos construtores dessa mesma relação.

O poder das relações

As relações contém nelas um enormíssimo poder. Quando amamos e somos amados bem, as relações podem assumir fatores protetores para a nossa saúde mental, traduzindo-se em menor possibilidade da pessoa apresentar quadros depressivos e de ansiedade, assim como maior bem-estar e otimismo face à vida e ao mundo.

O grande desafio das relações atualmente consiste em todo o movimento que deveremos ser capazes de construir dentro de nós mesmos, de modo a conseguirmos construir pontes que nos levem ao encontro do outro, sabendo é certo que este é um movimento que deverá ser sempre de duas direções.

Ou seja, referindo-se a um caminho que ambas as pessoas parceiras deverão ser capazes de fazer para se encontrarem e amarem saudavelmente.

Tantas vezes este movimento passa por permitir a construção de uma maior autoconsciência relacional, através de um mergulho permitido pelas lentes sistémicas.

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O que é a inteligência relacional na relação amorosa?

A inteligência relacional é a capacidade de compreendermo-nos profundamente no contexto dos nossos relacionamentos íntimos. Consiste em compreendermo-nos a nós mesmos no lugar das relações, permitindo potenciar-nos enquanto indivíduos, ao mesmo tempo que procuramos trabalhar e fazer crescer de forma mais madura a nossa relação.

Para tal, precisamos de observar o que existe ou o que acontece dentro de nós.

É Viktor Frankl quem nos indica que, perante um estímulo e um resposta, poderá existir uma pausa consciente que nos permita parar e observar o que existe dentro de nós, quais os nossos pensamentos, as nossas emoções, de onde vêm, quais as nossas distorções ou esquemas mentais ou padrões que estão a impactar a forma como reagimos.

É quando ganhamos consciência do que trazemos na nossa mochila, que aprendemos que do outro lado está uma outra pessoa igualmente com a sua mochila que carrega dentro de si, com lentes tão únicas quanto complexas.

É este olhar mais dentro de nós mesmos que consiste a inteligência relacional fundamental para nos desenvolvermos e melhor caminharmos rumo ao encontro do outro.

Atualmente, desenvolvemos a expectativa de que a nossa pessoa parceira seja o nosso tudo. O nosso amante, o nosso melhor amigo, o nosso confidente, por vezes até o nosso parceiro de negócios e a mão que caminha dada à nossa na construção de uma co-parentalidade.

Os desafios de uma relação são enormes e as exigências que lhe colocamos talvez sejam maiores ainda. Talvez esta seja uma das razões pelas quais as taxas de divórcio sejam tão elevadas. As expectativas irrealistas que atiramos para cima da nossa relação e que acabam por nos frustrar, zangar e conduzir a um labirinto de solidão que se vai intensificando com o tempo.

Que ferramentas fomentam ou constroem os casais inteligentes relacionalmente?

Os casais inteligentes relacionalmente tendem a ser fonte de suporte emocional mútuo e potenciam o crescimento emocional de ambos.

Neste sentido, a inteligência emocional é uma característica abrangida pela inteligência relacional destes casais.

Podemos desenvolver a inteligência relacional através da atenção que colocamos na dinâmica das nossas relações, quando observamos o que acontece na relação como sendo uma dança, um padrão ou uma coreografia e que consiste em como cada um dos elementos age ou se comporta um com o outro.

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Para além de um olhar curioso sobre si mesmo, estes casais procuram fomentar a construção de algumas ferramentas na sua relação, tais como:

1. Tendem a trabalhar as suas lentes e narrativas da história de ambos os parceiros

Sabemos que a nossa história permite atribuir um sentido às nossas experiências de vida, construir crenças, ideias, expectativas e, por vezes, também distorções, manipulações, sobre como somos, como as relações são e como o amor é ou deveria ser.

Quando ambos compreendemos as histórias e o peso que estas acarretam, conseguimos trazer para cima da mesa da nossa relação, um maior sentimento de segurança, respeito mútuo, compreensão e experienciar verdadeiramente uma maturidade emocional na idade adulta, com uma menor interferência dos aspectos da nossa história, que por vezes nos envolvem e emaranham infinitamente.

2. Tendem a construir uma imagem autêntica e humana do seu parceiro

Muitas vezes no decorrer do ciclo de vida de uma relação, os casais tendem a negligenciar e até invalidar a perspectiva e a realidade do outro.

Uma relação inteligente relacionalmente consiste em construir uma lente do outro como sendo autêntica e legitima.

Que o lugar das suas perspectivas e necessidades não advém de um lugar de poder, luta ou competição, remetendo o nosso olhar para o outro enquanto adversário e não como elemento de uma mesma equipa; mas sim, como um ser humano que também tem as suas questões, as suas batalhas internas, as suas fraquezas e as suas necessidades, motivado para ser feliz e sentir-se mais conectado.

A inteligência relacional é como um músculo que necessitará de ser trabalhado, de modo a ir-se tornando mais eficiente a capacidade de sermos inteligentes emocionalmente na nossa relação
Sílvia Coutinho, psicóloga Sílvia Coutinho, psicóloga

3. Estes casais tendem a assumir a sua responsabilidade pessoal na construção de uma comunicação mais eficiente das suas necessidades e desejos

Tendem a compreender a importância de uma comunicação eficiente, construtiva, concisa, com um tom de voz calmo e com mensagens que iniciem na primeira pessoa.

Ou seja, estes casais compreendem a enormíssima importância de construir canais de comunicação mais claros, de serem responsivos emocionalmente, presentes e sintonizados emocionalmente na comunicação, da importância da escuta ativa, de verem e serem vistos emocionalmente, de modo a construir uma dança relacional que sabem ser saudável.

Todos os assuntos, mesmo os mais difíceis e desconcertantes, podem ser conversados entre si, mais do que numa atitude de solucionar, numa atitude de receber as emoções e necessidades do outro, amparar, escutar e de modo a não se promover a construção de fendas dilacerantes diante dos ressentimentos relacionais.

4. Movimentam-se de uma posição de reatividade e defensividade para uma posição de proatividade

Muitas vezes, numa relação que nos é importante e significativa, reagimos automaticamente sem grande espaço para uma reflexão ponderada e consciente do nosso lugar emocional, determinado desta forma a nossa reação e comportamento.

Estes casais procuram trazer este lugar de conhecimento e consciência de se tornarem mais intencionais nas suas interações, assumindo uma ação mais consciente, construtiva e efetiva em termos relacionais.

A inteligência relacional é como um músculo que necessitará de ser trabalhado, de modo a ir-se tornando mais eficiente a capacidade de sermos inteligentes emocionalmente na nossa relação.

5. Tendem a valorizar as necessidades e desejos da sua pessoa parceira, assim como também as suas

Estes casais recordam-se que uma relação inteligente relacionalmente não consiste em os elementos focarem-se apenas nas suas próprias necessidades e desejos, pelo contrário.

Estes casais compreendem a importância de não desaparecem enquanto indivíduos na sua relação, mas igualmente de procurar construir pontes de encontro e ligação em direção ao outro e às necessidades deste e da relação.

6. Estes casais tendem a focar-se na construção de um sentimento de segurança relacional

Estes casais constroem diariamente um sentimento de segurança relacional, ao recordarem-se dos efeitos tremendamente negativos que o criticismo, a culpabilização e o envergonhar do outro assumem numa relação e ao assumirem comportamentos que estabelecem a segurança necessária para o seu crescimento emocional e relacional.

7. Encontram formas construtivas de atender às suas necessidades e desejos que não passe pela coerção

Estes casais procuram comunicar claramente sobre as suas necessidades, sem ter de passar pela crítica, pela culpabilização ou desvalorização do outro ou por imaginar que o outro tem uma bola de cristal que adivinha o que necessita.

8. Estes casais nutrem o sentimento de curiosidade na sua relação

Tantas vezes desejamos que o outro seja um espelho de nós mesmos, conduzindo a insistências críticas e duras que o outro aja conforme desejamos ou teríamos como expetativa.

Estes casais procuram de forma constante fomentar uma atitude de curiosidade sobre si mesmos, mas também sobre o outro, mais do que promover julgamentos destrutivos.

Neste sentido, movimentam-se do lugar de assunções, determinismos e achismos, para uma atitude de abertura e curiosidade por permitir conhecer e aceder à autenticidade e verdade da pessoa que o outro é, aceitando a sua diferença.

É a nossa inteligência emocional, a capacidade de nos sentarmos com as nossas emoções e com todas as partes de nós, que nos permite sermos mais inteligentes relacionalmente e melhorar o nosso sentido de conexão com os outros
Sílvia Coutinho, psicóloga Sílvia Coutinho, psicóloga

9. Estes casais aceitam a dificuldade e imperfeição em que consiste construir uma relação de amor sólida, conectada e inteligente relacionalmente

Assumem que a construção de uma relação requer ação no concreto, compromisso, investimento e disponibilidade emocional, disciplina, consistência e coragem para crescer e mudar.

Conclusões

Em ultima instância, estes casais interessam-se pela vida e pelo dia a dia um do outro, pelas emoções, sentimentos e pensamentos do outro. Procuram ter-se em conta e em cuidado mútuo, procurando estabelecer e construir diariamente reciprocidade, ou seja, uma relação verdadeiramente vivida e partilhada a dois, sem lugar para o vazio e a solidão emocional com que muitos casais se confrontam hoje em dia.

O lugar de poder, liderança e influência na relação é mútuo, sem procurar impor a sua posição ou a sua certeza rígida.

Praticam a tolerância face aos erros e imperfeições do outro, procurando reparar quando se apercebem dos seus momentos de desconexão e distanciamento.

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São casais que procuram construir verdadeiramente um Nós, um mapa da sua relação, uma cultura e identidade de casal, procurando ativar e respeitar a riqueza da unicidade dos seus elementos, definindo os valores, as metáforas, os sonhos, os desejos que os aproximam e expandem enquanto casal e indivíduos.

É a nossa inteligência emocional, a capacidade de nos sentarmos com as nossas emoções e com todas as partes de nós, que nos permite sermos mais inteligentes relacionalmente e melhorar o nosso sentido de conexão com os outros.

É quando vamos ao mais profundo de nós que entramos num dos lugares mais bonitos, apenas visitados com coragem: a vulnerabilidade. É quando deixamos o individualismo e egocentrismo para trás, as máscaras e escudos protetores, quando nos despimos, que nos compreendemos melhor a nós mesmos.

O poder de uma relação inteligente relacionalmente consiste em sermos. E para isso deveremos trabalharmo-nos. Para sermos mais calmos. Sermos segurança. Sermos ouvintes. Sermos compreensivos. Sermos conscientes. Sermos empáticos. Sermos serenos. Sermos responsáveis afetivamente. Sermos maduros emocionalmente. Sermos gentis. Sermos íntegros. Sermos melhores companheiros para quem realmente amamos.

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