Relações e família

Crónica. Como lidar com famílias tóxicas no Natal em casal

A família é para muitos sinónimo de pertença, apoio e segurança. No entanto, nem sempre representa um espaço emocionalmente saudável para todos os indivíduos e casais, transformando o Natal numa data à qual o casal terá de sobreviver.

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Crónica. Como lidar com famílias tóxicas no Natal em casal Crónica. Como lidar com famílias tóxicas no Natal em casal
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Sílvia Coutinho, psicóloga
Escrito por
Dez. 23, 2025

Comentários invasivos, ironias, sarcasmos, críticas constantes, desvalorização da pessoa parceira, tentativas de controlo, dinâmicas familiares de dependência ou de desvalorização e agressividade podem ser uma presença assídua na consoada de Natal para muitos casais, colocando a relação num território de tensão e desentendimento permanente.

Famílias: é preciso sair da ilha para ver a ilha

Na verdade, gerir comportamentos familiares tóxicos nem sempre implica romper laços, mas sim proteger a relação conjugal, criando fronteiras e limites claros que permitam ao casal estar, ser e continuar a crescer com a devida autonomia emocional. Não obstante, por vezes “é preciso sair da ilha para ver a ilha”, como dizia Saramago. Nem todos os indivíduos conseguem reconhecer alguns destes comportamentos e padrões familiares, os quais muitas vezes fazem parte das suas vidas desde sempre.

Por um lado, porque são habituais desde o nascimento e, portanto, muitas vezes os indivíduos percecionam estes como “normais”, acreditando que essa é a forma de se ser família em todas as famílias. Por outro lado, porque a lealdade invisível faz parte dos processos inconscientes familiares. Esta descreve os laços inconscientes e os compromissos afetivos que os elementos carregam da sua família de origem, conduzindo-os a repetir padrões ou mesmos comportamentos de sofrimento, traumas sem terem consciência disso mesmo, por um “amor cego” para pertencer àquele sistema familiar.

O processo de lealdade invisível familiar impede, por isso mesmo, a diferenciação emocional dos seus elementos, assim como o seu desenvolvimento emocional, podendo gerar culpa, bloqueios, dependência e um mal-estar que é muitas vezes engolido e silenciado.

Neste sentido, os indivíduos, e consequentemente os casais, necessitariam de ganhar consciência das dinâmicas e padrões das suas famílias de origem para os conseguir identificar e honrar a história familiar sem repeti-la, de modo a viver de uma forma mais autêntica e libertando-se das amarras emocionais familiares.

Compreender o nosso passado permite-nos chegar a um lugar de maior consciência e, com ela, fazer sentido da nossa vida, reganhando a capacidade de nos conectarmos emocionalmente de uma forma mais autêntica e honesta, assim como sermos mais flexíveis nas nossas relações mais importantes, por ganharmos novas visões do passado e novas perspetivas face ao nosso presente e ao futuro que queremos viver.

A forma como o nosso sistema familiar funciona ou funcionou contém em nós um enorme peso, não fosse a nossa família o nosso berço e o início de tudo.

Olhar para nós mesmos permite ganhar consciência dos nossos pensamentos, crenças e condicionamentos a que fomos sujeitos ao longo da vida. Dos nossos padrões, da nossa narrativa que tantas vezes se entranha no comportamento, nos bloqueios, ansiedades e evitamentos. Dos gatilhos que nos impactam e ativam emocionalmente.

Olhar para nós mesmos, curiosa e compassivamente, implica crescer em tamanho emocional e estarmos muito mais dotados de ferramentas essenciais aos nossos relacionamentos, como a empatia e a responsabilidade emocional. Estas ferramentas permitem‑nos aprender a sair dos muros que nos encerram em nós, compreender a perspetiva do outro e assumir a responsabilidade pelo impacto do que trazemos para a relação. Ao compreendermo‑nos melhor, aprendemos a regular as nossas emoções, tornando‑nos menos reativos e mais habilidosos na comunicação amorosa, promovendo uma interação mais saudável.

A forma como o nosso sistema familiar funciona ou funcionou contém em nós um enorme peso, não fosse a nossa família o nosso berço e o início de tudo.

O impacto silencioso das famílias tóxicas nas relações

Em muitas ocasiões, o casal poderá deparar-se com interferências familiares que traduzem intenções e raízes positivas, podendo até representar uma importante rede de apoio bastante valiosa para o casal. Sob essa perspetiva, o objetivo não é atribuir culpa à família pelo seu legado familiar, pelo contrário. Sabemos que há uma boa razão que explica por que cada família funciona de determinada maneira, com a certeza de que os seus elementos procuram, na grande maioria das vezes, fazer sempre o seu melhor.

Contudo, é importante que o casal aprenda a estabelecer limites claros e saudáveis com as suas famílias de origem. Não é incomum a interferência familiar conduzir o casal a:

  • conflitos repetidos;
  • mal-estar na dinâmica conjugal;
  • desvalorização ou exclusão da pessoa parceira;
  • afastamento emocional;
  • perda de intimidade;
  • dificuldade em tomar determinadas decisões com foco no bem-estar do Nós do casal;
  • uma sensação de deslealdade, traição, etc.

Desta forma, nem sempre o problema se resume apenas ao comportamento dos elementos da família de origem, mas também à dificuldade do casal em se posicionar como uma unidade.

Do vínculo de origem ao vínculo escolhido

Formar um casal implica uma transição emocional importante: a relação amorosa passa a ocupar o lugar central da vida adulta. Este é um movimento natural, mas poderá gerar resistência, nomeadamente em famílias que demonstram maior dificuldade em lidar e aceitar a autonomia dos seus filhos.

Desta forma, é essencial distinguir entre lealdade familiar saudável e submissão emocional. Manter laços familiares saudáveis não deverá significar abdicar de escolhas, valores ou do bem-estar da relação conjugal. Embora este movimento seja natural, requer, na verdade, também a capacidade de cada elemento do casal de realizar saudavelmente o seu processo de diferenciação emocional face às famílias de origem (individualidade do Self e neste sentido a autorização de sermos quem somos, trazendo na nossa mochila valores, comportamentos e princípios da nossa família de origem, mas também algo exclusivo a nós mesmos e que faz de nós quem somos).

Limites: um ato de amor, não de confronto

Famílias tóxicas tendem a ativar emoções antigas, como culpa, medo de rejeição, insuficiência, necessidade de aprovação, desvalorização ou mesmo humilhação e medo. Quando essas feridas não são reconhecidas, poderão ser transferidas para a relação amorosa ou, pelo menos, impactá-la negativamente face à dinâmica que o casal poderá vivenciar junto desta.

Estabelecer limites é uma das tarefas mais desafiantes, mas na verdade das mais necessárias para a saúde do Nós do casal. Limites claros ajudam a prevenir conflitos e a reduzir desgastes emocionais que eventualmente surjam.

Limites saudáveis do casal face à família de origem correspondem a:

  • Não permitir comentários depreciativos sobre a pessoa parceira;
  • Não expor conflitos do casal à família de origem;
  • Definir previamente o grau de envolvimento familiar em decisões do casal;
  • Definir em conjunto o que é aceitável e o que não é;
  • Priorizar o casal enquanto nova família escolhida;
  • Manter uma distância saudável face à família de origem;
  • Comunicação assertiva, mas gentil face à interferência da família de origem para preservar a autonomia e bem-estar do casal.

Nem todas as famílias irão compreender ou validar os limites estabelecidos. Compreender essa realidade poderá ser bastante doloroso, mas concomitantemente libertador, face ao sentimento de respeito pessoal e autopreservação que o estabelecimento de limites concede.

A aliança do casal requer comunicação

A construção de um casal requer a construção de uma identidade de casal, ou seja, de compreendermos e definirmos quem somos nós enquanto casal, os nossos valores, objetivos, princípios, intenções ou acordos. Esta identidade, assente em acordos (explícitos e por vezes também implícitos, mas que o casal deverá trazer para cima da mesa para uma maior consciência e bem-estar relacional), permite ao casal estar mais alinhado nas mais diversas situações da sua vida. A relação com as famílias de origem não é exceção.

Desta forma, é importante que o casal:

Comunique sobre expectativas: Discutir o que é saudável para o casal e o que não é, antecedendo desafios. Exemplos: “O que é saudável para nós?”, “Como desejamos estar e viver o Natal com as famílias de origem?”, “Até que ponto opiniões externas nos influenciam e se consentimos a sua influência?”.

Seja equipa: Deverão construir uma equipa unida, decidindo em conjunto como lidar com os familiares, não descurando a segurança e a união do casal. O objetivo passa pela proteção e asseguração do vínculo conjugal;

Comunique assertivamente: O casal deverá ser firme, mas respeitoso.

Priorize o relacionamento: O casal e a nova família deverão vir em primeiro lugar. Poderá ser importante manter momentos a sós para fortalecer a conexão e preservar a intimidade do casal;

Mantenha uma distância saudável: O casal não necessita de partilhar todos os assunto ou questões relacionais ou da sua vida privada. Poderá ser importante o casal resolver os desafios entre si, de modo a desenvolver independência;

Não escolher lados: É de evitar as situações em que se coloca a pessoa parceira na posição de escolher entre a família e a relação;

Não falar mal da família da pessoa parceira: O respeito é um pilar essencial na construção de uma relação de casal saudável;

Estabelecer regras claras: O casal deverá ser claro sobre o que não é negociável (por exemplo: críticas constantes, imposição de valores, rituais, pressões, etc);

Falar como casal: A comunicação com a família deve refletir uma posição conjunta (“Nós”), de modo a reforçar a identidade do casal e a reduzir as triangulações familiares.

O Natal poderá continuar sempre a ser uma quadra de amor, mesmo quando os seus elementos têm de gerir famílias de origem que apresentam comportamento tóxicos. Exigirá sempre maturidade emocional, diálogo conjugal e limites muito bem estabelecidos.

Na verdade, recordo que um casal emocionalmente saudável não é um casal que evita conflitos, mas sim aquele que consegue manter-se unido, respeitoso e conectado, mesmo perante pressões familiares ou dinâmicas familiares disfuncionais. Proteger a relação é, muitas vezes, o maior ato de amor, pela sua pessoa parceira e por si mesmo.

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