Bem-estar

Crónica. Não quero uma boa vida; eu quero uma vida boa

Imagine que o dinheiro não existia, que não precisava de o ganhar, como gastaria o seu tempo? Esta pergunta faz-nos viajar para um mundo de possibilidades, em que apenas importa o que realmente importa. Por pressões culturais e sociais, não estamos programados para pensar assim, mas saber a resposta é muito importante para o nosso bem-estar.

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Crónica. Não quero uma boa vida; eu quero uma vida boa Crónica. Não quero uma boa vida; eu quero uma vida boa
© Unsplash
Sara Midões
Escrito por
Mar. 18, 2020

*Acompanhe mensalmente a jornada de uma marketeer a aprender a ciência da felicidade.

Imagine-se nas Bahamas, a desfrutar de uma bebida fresca, a sentir o calor dos raios do sol depois de um mergulho nas águas transparentes e mornas. Paisagem idílica, zero preocupações. Que bela vida! Agora imagine-se a fazer isto um dia após o outro, só isto e nada mais.

Para a grande maioria de nós, faltaria algo. Quantas histórias ouvimos de pessoas que têm “tudo” para se sentirem bem: um casamento de sonho, um emprego bem remunerado, uma casa de revista… Sentem-se bem, mas sentem também que lhes falta algo. Uma espécie de vazio. E por que será?

Gerar uma vida, a nossa descendência, dá-nos a convicção de que cumprimos um dos nossos propósitos, de que pertencemos e servimos a algo que acreditamos ser maior que nós
Sara Midões Sara Midões

A palavra anglo-saxónica happiness deriva do verbo acontecer (to happen), ou seja, refere-se a algo exterior ao indivíduo, cujo controlo lhe é alheio. No entanto, nas culturas de origem latina, a palavra felicidade tem um significado etimológico de Fecundidade, de Fertilidade, centra-se, portanto, na capacidade de gerar, de criar, em algo que emana de nós. Nesta abordagem, o que fazemos é o que nos faz felizes; não o que nos acontece.

A Psicologia Positiva distingue também estas duas perspetivas do bem-estar:

A perspetiva hedónica, associada à procura de prazer, a uma vida agradável, à boa vida, ao que é exterior ao próprio.

A perspetiva eudaimónica, inspirada no pensamento aristotélico, mais profunda, mais significante, e que remete para uma vida completa, uma vida boa. Em grego, eu significa “bom” e daemon significa “espírito”. Feliz será então aquele que faz e cumpre a sua missão, que se dedica a algo maior do que a si próprio.

Martin Seligman, que desenvolveu um dos mais citados modelos de bem-estar, elenca o Significado como um dos cinco pilares da felicidade completa, de uma vida que floresce. Já antes, Carol Ryff, investigadora da universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, tinha incluído o propósito de vida e o crescimento pessoal nas dimensões do bem-estar psicológico.

Qualquer dos autores sublinha: muitas vezes a prossecução do nosso propósito não está motivada pela procura de prazer, mas sim por um chamamento, por uma necessidade. Uma vida com significado não é necessariamente uma vida agradável. Por exemplo, está demonstrado que os pais sofrem uma quebra substancial de satisfação com a vida desde o nascimento dos seus filhos e até que estes atingem os dois anos de idade.

Quem já passou por isso sabe que há momentos difíceis, de cansaço, de angústia… E voltaríamos atrás? Impensável. Para muitos de nós, gerar uma vida, a nossa descendência, dá-nos a convicção de que cumprimos um dos nossos propósitos, de que pertencemos e servimos a algo que acreditamos ser maior que nós.

Às vezes é preciso tomar coragem e mudar o que for preciso para irmos ao encontro de uma vida com significado
Sara Midões Sara Midões

Se muitas vezes viver em função do nosso propósito é difícil, o caminho para o descobrir também não é nada fácil. Estamos tão embrenhados a viver os dias uns após os outros, as semanas umas atrás das outras, em cumprir com as nossas responsabilidades, em ser o que esperam de nós, em ser o que nós esperamos de nós próprios, que nos esquecemos. Abafamos o vazio. Assumimos que tem que ser assim.

Mas não tem que ser assim. O caminho pode ter muitas curvas mas vale a pena percorrê-lo. Estudos evidenciam que a família e os relacionamentos estão no topo da lista de propósitos. Outras fontes comuns de significado são cuidar de outros, o trabalho, fé ou religião, a natureza, a criatividade, o sucesso, uma causa ou simplesmente o crescimento pessoal.

E não é suposto termos só um propósito; a vida é feita de muitas facetas. No trabalho, podemos construir uma vida significante através do conhecimento que geramos, do que acrescentamos à sociedade, ou do serviço que prestamos a outros. Encontrar o nosso propósito requer reflexão, mas também ação. Às vezes é preciso ter coragem e mudar o que for preciso para irmos ao encontro de uma vida com significado. Muitas vezes, porém, apenas precisamos de encontrar significado no que já temos e fazemos na nossa vida.

Nunca mais me esqueci de ter visto uma entrevista de um portageiro de uma ponte que dizia que o objetivo dos seus dias era aumentar a boa disposição das pessoas que iam de manhã para o trabalho. O seu sorriso era contagiante e a sua vida cheia de significado.

Também me recordo de um profissional de limpeza de um hospital que tinha como missão ajudar a travar a propagação de bactérias nocivas; o seu papel era importante.

Lembro-me igualmente de uma speaker motivacional que usa o humor para ajudar quadros de empresas: “o meu propósito é ajudar as pessoas a serem quem são de verdade”.  Tudo exemplos de vidas boas, não necessariamente de boas vidas.

Uma das formas certeiras de percebermos o(s) nosso(s) propósitos é pensarmos como gostaríamos de ser lembrados por quem nos fomos cruzando ao logo do tempo. Ou numa perspetiva mais radical, o que nos orgulharia que escrevessem no nosso obituário.

As forças, virtudes, interesses, circunstâncias, experiências e sonhos são altamente individuais. O que valorizamos, ou a forma como o interpretamos, é diferente de como os outros o fazem. Há, no entanto, algo que nos une; o tempo e a energia são limitados e ter uma noção das nossas prioridades ajuda-nos a manter as coisas em perspetiva e a fazer escolhas. As pequenas e as grandes. As do dia a dia e as de uma vida.

E se tivesse todo o dinheiro do Mundo…?

Para uma dose extra de inspiração:

O que faz uma vida boa? Ted Talk de Robert Waldinger, psiquiatra e professor da Harvard Medical School.

PS: Agradecimentos ao Slow J, cuja música que descobri pelo meu filho mais velho inspirou o título desta crónica.

Sara Midões, trabalha em marketing e gestão comercial, e partilhará com os leitores da Saber Viver todas as maravilhas da descoberta da ciência do Bem-Estar. É mãe de dois adolescentes e praticante convicta de yoga.

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