Violência doméstica. Uma realidade que tem de ser falada (e travada)

O número de casos de violência doméstica aumentou em 2018, sobretudo os homicídios concretizados. As queixas reportadas têm crescido, em boa parte devido à maior informação das vítimas. Mas há ainda muito por fazer. Conheça a realidade, como detetar comportamentos abusivos, quais os direitos das vítimas e onde pedir ajuda.

Por Fev. 26. 2019

“Era ainda adolescente quando o conheci. Foi uma paixão arrebatadora. Ele era mais velho do que eu e mostrava um amor louco por mim. Nunca tinha conhecido outra pessoa antes. Ao fim de um ano, casámo-nos. No início, tudo correu bem. Eu geria as contas e as coisas da casa. Ele trabalhava e contribuía para as nossas despesas. Só me apercebi da dependência dele com o álcool muito tempo depois de vivermos juntos. Comecei a perceber que o dinheiro desaparecia num instante e, quando faltava, tínhamos problemas. Foi nessa altura, também, que ele me bateu pela primeira vez. Nem me recordo porque se chateou comigo, mas sei que, de repente, ficou furioso e atirou com uma gaveta de um móvel para cima de mim. Fiquei tão triste que saí de casa. Foi a primeira de muitas vezes. Ele fazia muitas cenas de ciúmes, mas eu achava aquilo normal por gostar muito de mim. Agora sei que não é.”

Esta é a história de Joana (nome fictício) e foi contada por Rita Montez, ex-jornalista, no livro Vidas Suspensas – Histórias de Mulheres Vítimas de Violência Que Lutam nos Tribunais pelos Direitos dos Filhos (APMJ – Associação Portuguesa de Mulheres Juristas), mas podia ser a de tantas outras mulheres.

Mas a violência não se ficou por aqui. Joana foi vítima de tentativa de homicídio por parte do ex-companheiro, pai das suas duas filhas, e ainda assim obrigada pela justiça a levar as filhas a ver o pai à prisão. Este episódio mostra que estas mulheres “são igualmente vítimas do desfasamento entre os processos-crime e os processos de proteção de menores, onde muitas vezes funciona o preconceito e uma cultura de desculpabilização deste tipo de episódios, perpetuando a violência”, explica Rita Montez.

Violência doméstica em números

As estatísticas são alarmantes e falam por si.

Em 2017, a APAV (Associação de Apoio à Vítima) registou quase 41 mil atendimentos, o que representou um crescimento na ordem dos 19% entre 2015 e 2017;

 Segundo dados do Observatório de Mulheres Assassinadas, da UMAR, em 2017 ocorreram 28 tentativas de assassinato e 20 femicídios no total;

• Até novembro de 2018, os dados apontavam para 24 casos de homicídio, número que já ultrapassava o total de 2017;

• Entre o dia 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2018, foram registados um total de 28 homicídios de mulheres resultantes de violência doméstica (por atuais ou ex-companheiros e familiares diretos);

• Desde o início deste ano e até fevereiro de 2019, os números continuam a surpreender, com um total de 11 mortes de mulheres vítimas de violência doméstica;

Estes dados quebram o ciclo descendente do número de vítimas mortais na última década. As estatísticas da APAV indicam que, das quase dez mil vítimas apoiadas por esta entidade em 2017, cerca de 80% eram mulheres e que 39% destas se situavam na faixa etária entre os 25 e os 54 anos. Deste número de denúncias, cerca de 75% diziam respeito a violência doméstica.

Ciúme não é amor

Daniel Cotrim, psicólogo e responsável pela área de violência doméstica da APAV, refere que estes números não querem dizer que houve um aumento da violência, mas sim que houve mais denúncias. E isto é importante, pois muitas mulheres começam a dar sinais cada vez mais cedo de querer sair de situações abusivas.

“Geralmente, estas mulheres aguentavam situações de violência entre 15 e 20 anos. Hoje, esta média está a reduzir, atingindo os seis anos”, refere Daniel Cotrim. O psicólogo diz ainda que há um estudo americano que afirma que as mulheres decidem sair desta situação abusiva à sétima vez que são violentadas.

Muitas vezes as vítimas não abandonam aquela relação porque se sentem culpadas pelo que está a acontecer – Daniel Cotrim, psicólogo

Para Daniel Cotrim, não há um perfil definido para as vítimas de violência doméstica. “Pode acontecer a qualquer pessoa, em qualquer idade e em qualquer estrato social. Muitas vezes as vítimas não abandonam aquela relação porque se sentem culpadas pelo que está a acontecer, já que os agressores tentam, muitas vezes, colocar-lhes a responsabilidade em cima. Frequentemente nem se apercebem destes abusos, que confundem com ciúme e, por isso mesmo, desculpabilizam recorrentemente o companheiro: ‘ele só faz isto porque gosta muito de mim’”.

E, cada vez mais, esta violência começa no próprio namoro, em que há até um rácio de 50/50 de género agressor: eles agridem, fisicamente ou psicologicamente, e elas também retaliam, criando assim uma dinâmica de casal que assumem como sendo normal.

Como detetar comportamentos abusivos

A APAV listou algumas questões que podem ajudar a detetar comportamentos abusivos e a perceber se está a ser vítima do crime de violência doméstica. A presença de um ou mais destes comportamentos pode significar que é vítima de violência física, psicológica ou sexual no seu relacionamento.

Tem medo do temperamento do seu namorado/a?

 Tem medo da reação dele(a) quando não têm a mesma opinião?

 Ele(a) ignora constantemente os seus sentimentos?

Goza com as coisas que lhe diz?

 Procura ridicularizá-lo(a) ou fazê-lo(a) sentir-se mal em frente dos seus amigos ou de outras pessoas?

Alguma vez ele(a) ameaçou agredi-lo(a)?

Alguma vez ele(a) lhe bateu, deu um pontapé, empurrou ou lhe atirou com algum objeto?

Não pode estar com os seus amigos e com a sua família porque ele(a) tem ciúmes?

Alguma vez foi forçado(a) a ter relações sexuais?

Tem medo de dizer “não” quando não quer ter relações sexuais?

É forçado(a) a justificar tudo o que faz?

Ele(a) está constantemente a ameaçar revelar o vosso relacionamento?

Já foi acusado(a) injustamente de estar envolvida ou ter relações sexuais com outras pessoas?

Sempre que quer sair tem de lhe pedir autorização?

Muitas [mulheres] não estão preparadas para a mudança e pensam: ‘este homem, que eu conheço, não é assim’ –  Isabel Ventura, socióloga e investigadora 

O ciclo da violência doméstica

Feitas estas questões, é relevante realçar que a violência doméstica é reconhecida como um sistema circular – o chamado ciclo da violência doméstica – isto porque envolve, regra geral, comportamentos divididos em três fases. São elas:

1. Aumento da tensão

As tensões quotidianas acumuladas pelo agressor criam um ambiente de perigo iminente para a vítima. Exemplos: acusar a vítima de não ter cozinhado ou cozinhado com sal a mais, de ter chegado tarde a casa ou a um encontro, de ter amantes, etc.

2. Ataque violento

Começam os maltratos, física e psicologicamente. A vítima procura defender-se, na esperança que o agressor não seja demasiado violento. É nesta fase que os ataques ocorrem com grande intensidade, terminado muitas vezes em vítimas em estado grave e a precisar de tratamento.

3. Apaziguamento ou “lua-de-mel”

Depois da tempestade vem a bonança. Após ter descarregado a tensão na vítima, o agressor manifesta arrependimento e promete nunca mais voltar a ser violento. Pode alegar, por exemplo, que o dia lhe correu mal, que bebeu demasiado ou que consumiu drogas. Para que tudo tenha um desfecho a seu favor, pode tratar a vítima com delicadeza e tenta seduzi-la, fazendo-a acreditar que foi a última vez que se descontrolou.

Entre o medo, a esperança e amor, estes comportamentos levam a vítima a acreditar que há pontos positivos na relação e que, por isso, vale a pena superar as dificuldades que se encontram pelo caminho.

Conhecer os direitos das vítimas

A socióloga e investigadora Isabel Ventura, autora do livro Medusa no Palácio da Justiça ou Uma História da Violação Sexual (Tinta da China, 2018) refere que, apesar do que tem sido feito, há ainda muito mais a fazer no difícil combate à violência, sobretudo de homens sobre mulheres, que é ainda estrutural. É preciso, sobretudo, dotar as vítimas de informação, pois, “para se ser vítima, é preciso conhecer-se os seus direitos”, diz.

Quando questionada sobre os motivos que levam muitas mulheres a aguentar situações abusivas explica: “Muitas não estão preparadas para a mudança e pensam: ‘este homem, que eu conheço, não é assim’. Outras vezes, estão em situações de profunda vergonha e de culpa porque falharam.” E custa-lhes denunciar porque têm de explicar porque se mantiveram naquela relação abusiva.

Outros motivos prendem-se com o medo de ficar sozinha, de ser assassinada, de perder os filhos, ou de não ter capacidade financeira para os manter, ou até, muitas vezes, medo de ser considerada ‘doida’ pelos outros, já que o companheiro – geralmente os agressores são pessoas altamente manipuladoras – pode denegrir publicamente a sua imagem.

Tudo isto é um conjunto de situações que levam a prolongar uma situação de intimidade abusiva que, não raras vezes, acaba por prejudicar os filhos, que vivem também eles num ambiente tóxico. E, tal como aconteceu com a Joana, por vezes a justiça não os defende, obrigando as crianças a estar com o agressor. “E tudo isto leva a que estas mulheres sejam duplamente prejudicadas”, remata a socióloga Isabel Ventura.

A violência doméstica é considerada crime pelo Código Penal Português. A vítima de deve conhecer os seus direitos.

© APAV

Direitos no Processo Penal

 Ao respeito e reconhecimento em todas as fases do processo penal;
• A receber informações e esclarecimentos sobre o decurso do processo penal – e a obter uma resposta judiciária no prazo limite de 8 meses;
• A fornecer informações às autoridades responsáveis pela tomada de decisões relativamente ao infrator (inclusive enquanto o processo decorre, com provas como por exemplo: inquirições, exames médicos, etc);
 Ao acesso a aconselhamento jurídico, independentemente da sua situação económica;
 À proteção, tanto da sua privacidade como da sua integridade física;
 A indemnização, quer pelo arguido, quer pelo Estado.

Direitos Sociais

• A obter reconhecimento pela sociedade dos efeitos dos crimes;
• a A obter informações relativas aos seus direitos e aos serviços disponíveis;
• De aceder aos serviços de saúde;
• A receber uma indemnização pecuniária nos casos em que o crime tenha originado uma perda de rendimentos;
• De ter acesso a medidas adequadas de proteção do domicílio;
 A receber apoio e proteção no local de trabalho;
• A receber apoio e proteção nos estabelecimentos de ensino;
 De aceder a serviços de apoio à vítima gratuitos;
 À proteção da sua privacidade.

Saiba mais sobre os direitos da vítima.

Como pedir ajuda em caso de violência doméstica

Cada um de nós pode ser vítima de um crime, e é para ajudar a ultrapassar essa experiência traumática que a APAV disponibiliza 18 gabinetes de apoio à vítima em todo o País. O atendimento e acompanhamento são personalizados, e o apoio é confidencial e gratuito.

Se for vítima de crime, deve:

• Tentar, se possível, manter a calma;

• Na posse de documentos, dirigir-se à esquadra de polícia mais próxima, efetuar uma queixa e exigir um documento comprovativo da denúncia;

• Pode apresentar queixa eletrónica para o Ministério da Administração Interna;

• Pode contactar a APAV através da Linha de Apoio à Vítima gratuita: 116 006; diretamente nos Gabinetes de apoio à Vítima; ou por e-mail.


Depois de ler este artigo e perceber os principais problemas associados à violência doméstica, saiba como se defender em caso de assédio sexual.