
Lipedema: Sabe o que é a doença das “pernas gordas”?
Afeta maioritariamente mulheres, está subdiagnosticada e, apesar de ser uma doença crónica, o tratamento conservador e a cirurgia devolvem a qualidade de vida às doentes.
“Nunca consegui comprar umas botas de cano alto e só comprava saias a baixo do joelho.” Estas palavras pertencem a Célia de Matos, que em plena adolescência começou a notar algumas diferenças no seu corpo: os joelhos ficaram sem forma e os tornozelos muito largos. Foram precisos dez anos para ter um diagnóstico: lipedema, uma doença que afeta 11 por cento de mulheres em Portugal, mas cujos valores reais devem ser bem mais elevados, porque está subdiagnosticada.
Até ao ano passado, Célia Matos ouvia sempre as mesmas respostas nas consultas médicas: “É retenção de líquidos”; “Tem a perna gorda”; “É obesa”. “A minha médica de família, já depois do diagnóstico, continua a não saber o que é lipedema”, realça. Além da parte estética, antes de começar o tratamento conservador e cirurgia, os limites físicos já eram muitos.
“Não conseguia subir para o autocarro ou para um carro mais alto. A simples mão do meu namorado em cima da perna já não dava”, conta. Hoje, tem uma vida normal, faz caminhadas, drenagens e tem cuidado com a alimentação, apostando em alimentos anti-inflamatórios.
Alta inflamação
Olhemos então para esta doença. “O lipedema é uma doença do tecido conjuntivo, ou seja, o que está por baixo da pele, e que se caracteriza por uma acumulação desproporcional de gordura nos membros, principalmente nos inferiores. Se bem que em 30 por cento dos casos, possa também surgir nos membros superiores”, explica Joana de Carvalho, médica especialista em Angiologia e Cirurgia Vascular e fundadora da Leg Clinic® by Allure, no Porto.
A acumulação de gordura resistente à dieta e ao exercício físico, que também pode surgir nas ancas, é acompanhada de “dores, sensação de peso, hipersensibilidade, gordura” acrescenta a também autora do livro Lipedema – Como tratar a «doença das pernas gordas» (Contraponto).
A causa deste problema não é claramente conhecida, mas a genética tem um grande peso, tal como as hormonas. “Estima-se que em 50 por cento dos casos existam antecedentes familiares, mas achamos que essa percentagem é superior. Com as mudanças nutricionais e de estilo de vida nos últimos anos, os diagnósticos dispararam, mas não sabemos se já havia uma predisposição genética, que antes não se manifestava, porque as pessoas viviam no campo e não tinham um ritmo tão acelerado”, esclarece Jesús Olivas Menayo, cirurgião plástico e diretor do Instituto Português do Lipedema, em Lisboa.
Uma doença de mulheres
O sexo feminino tem especial predisposição para esta doença, apenas um a dois por cento dos casos são homens. “Acredita-se que o lipedema está muito relacionado com as hormonas femininas, principalmente com os estrógenos e, por isso, mesmo, tipicamente surge em alturas de grande mudança hormonal, como a puberdade, o início da toma da pílula, a gravidez e até da menopausa.
Não se consegue fazer prevenção, mas, uma vez feito o diagnóstico, é possível prevenir a sua progressão e travar o desenvolvimento de complicações, esclarece Joana de Carvalho. Jesús Olivas Menayo chama a atenção para o facto de o lipedema ser uma doença geral sistémica.
“Envolve problemas ginecológicos, autoimunes e intestinais. Temos visto muita associação entre o lipedema e doenças de carácter inflamatório e do sistema autoimune, seja hipotiroidismo, endometriose, síndromes do intestino irritável, doença de Crohn e outras enfermidades intestinais, que diminuem a absorção de determinadas substâncias, como vitaminas e sais minerais como o ferro”, explica o cirurgião plástico, que alerta que muitas pacientes com lipedema têm de ser suplementadas.
Resposta morosa
Um diagnóstico tardio é um dos principais problemas associados ao lipedema. “Tanto em Portugal como em Espanha, os médicos de Medicina Geral raramente pensam no lipedema, confundem-no com alterações vasculares, com obesidade e excesso de peso”, realça o diretor do Instituto do Lipedema. Cláudia Vicente, psicóloga que trabalha neste mesmo instituto, é um dos casos de um diagnóstico moroso.
Apesar de as queixas terem começado na adolescência, só aos 45 anos soube o que tinha. “Não sabia que tinha uma doença, mas sabia que aquelas pernas não eram as minhas”, afirma, confessando que só se reconheceu nas suas pernas após a cirurgia. “Esta é uma doença física que ocupa a cabeça. Psicologicamente é complexa, o corpo não coincide com o estilo de vida, há desconhecimento médico, pode começar na adolescência, que já por si só é uma altura complicada… O lipedema tem muitas implicações a nível da nossa autoestima e autoconfiança. Fisicamente, é doloroso”, conta, reunindo a sua experiência e as das pacientes que acompanha.
Este acompanhamento psicológico é fundamental, realçam Cláudia Vicente e Jesús Olivas Menayo. “Além da parte da imagem, temos de perceber que é uma doença crónica e o tratamento implica uma mudança no estilo de vida e essa alteração tem de caber na rotina de uma forma que não seja pesada. Depois, é importante ainda estar preparada para alguns recuos, pois há alturas em que há uma maior inflamação, somos mulheres e temos muitas oscilações hormonais”, esclarece Cláudia Vicente.
Tratamento conservador
A primeira linha de tratamento do lipedema é o chamado tratamento conservador, que vai controlar a inflamação que caracteriza esta doença. O diretor do Instituto Português do Lipedema, Jesús Olivas Menayo, diz que há 3D, essenciais: dieta, desporto e descanso.
“Uma alimentação anti-inflamatória; a prática de desporto, que promove aumento do gasto calórico, diminui a capacidade do depósito para armazenar a gordura, além de aumentar a massa muscular e ser a melhor forma de drenar as pernas; e o descanso são fundamentais. A estas juntam-se ainda a fisioterapia, com a drenagem manual linfática, que previne e melhora a fibrose. É importante que as doentes incluam práticas de bem-estar na sua rotina”, explica o cirurgião plástico.
O tratamento conservador “melhora a qualidade de vida e diminui as dores”, afirma a cirurgiã vascular Joana de Carvalho, que adianta ainda que, em alguns casos, pode também ser indicada alguma terapêutica farmacológica.
Alimentação anti-inflamatória
Joana Carvalho, médica especialista em Angiologia e Cirurgia Vascular, aconselha sempre uma avaliação nutricional no início do tratamento e ter acompanhamento, durante algum tempo para identificar problema que possam existir.
“A alimentação ideal varia de pessoa para pessoa, pois todos respondemos de forma diferente, mas, quando falamos de lipedema, visa-se abolir os alimentos processados e ultraprocessados. Deve-se privilegiar as hortícolas e a fruta. Depois, cada pessoa terá o seu gatilho, numa é o glúten, noutras os laticínios. A carne vermelha também tende a ser inflamatória, tal como o álcool e os açúcares refinados”, explica.
Relevante, continua a médica, é adequar ao gosto, conveniência e ao ritmo de vida do dia a dia. Jesús Olivas Menayo sallienta que é uma reeducação alimentar.
A cirurgia
Quando o tratamento conservador não surte efeito ou não é suficiente, recorre-se à cirurgia. “É uma cirurgia de redução do lipedema, é uma lipoaspiração com algumas características muito próprias para o tratamento desta doença”, explica Joana Carvalho, médica especialista em Cirurgia Vascular.
“O objetivo principal é, por um lado, conseguir quebrar as células de gordura, porque é uma gordura bastante diferente da habitual, é mais fibrosa e mais aderente, logo é mais difícil aspirar”, continua a médica. É usada então, como diz Jesús Olivas Menayo, cirurgião plástico, “uma lipoaspiração PAL supertumescente e/ou assistida por água sob pressão (Water-Jet Assisted Liposuction W.A.L.). O número de intervenções depende do volume de gordura a ser retirado, sendo comum a realização de duas a seis intervenções, com um tempo mínimo entre cada intervenção de um a seis meses”.