“Cheguei a ter pele em carne viva, colada às roupas, a sair em lascas”
Ana Paula Correia vive com dermatite atópica desde que nasceu. Ao longo dos anos, teve de aprender a lidar com a dor e a aceitar a doença, que afeta 1 a 3% da população adulta em Portugal. Este é o seu testemunho.
Para mim, falar sobre dermatite atópica não é só falar de uma doença, é falar sobre mim própria. Vivo com ela desde sempre, desde que me conheço.
Foi-me diagnosticada praticamente à nascença ou com apenas alguns dias de vida e as fotografias que tenho de bebé, com poucos meses, não deixam margem para dúvidas: as bochechinhas excessivamente rosadas, as lesões e os arranhões visíveis na pele de tanto coçar.
Assim como as memórias que me transmitem os meus pais: as noites sem dormir e a irritação e comichão constantes que presenciaram com muita dor, sem saber bem como aliviar o meu sofrimento.
Passada essa fase, da qual, felizmente, pouca memória tenho no que ao impacto da doença diz respeito, seguiram-se uma infância e uma adolescência já com consciência da doença, mas com esta perfeitamente localizada, apenas com algumas lesões nas mãos, em momentos mais exacerbados com gretas, e na parte interna das articulações dos cotovelos, pulsos e joelhos.
Nada de muito significativo, no entanto, e gerível com anti-histamínicos orais e cremes hidratantes e emolientes, que sempre fizeram parte da minha vida, assim como alguns corticoides tópicos.
Houve fases em que me esqueci praticamente de ter a doença, tal era a ausência de sintomas.
Foi a partir do final da adolescência/início da vida adulta, com 18 anos, que a doença se agravou substancialmente, passando a atingir fortemente a face e o pescoço e envolvendo, nas situações mais graves, grandes extensões do corpo.
Foi o acordar de algo que sempre soube ter tido, mas que não tinha tido ainda uma expressão tão forte como veio a ter nessa altura. Foi o início de vários anos difíceis, de uma luta diária constante, interna e externa.
Mas, afinal, o que é isto da dermatite atópica?
A dermatite atópica é uma doença que se caracteriza por uma sensibilidade e reatividade extremas da pele, fruto de um funcionamento exacerbado do sistema imunitário perante situações que este encara como ameaças como o são alguns alergénios (o pó, o pólen, os ácaros, alimentos e plantas, entre outros) e ainda o frio, o calor, o vento e produtos cosméticos
A dermatite atópica é ainda consequência de um comprometimento do funcionamento da barreira da pele, que se traduz numa incapacidade de esta reter a água e gordura necessárias a um nível normal de hidratação, o que a torna de uma secura extrema e permeável a quaisquer irritações e agentes infeciosos.
A componente emocional tem também um contributo importante no agravamento dos sintomas da doença, que se exacerba em momentos de maior stresse, ansiedade ou nervosismo.
É uma doença inflamatória crónica, multifatorial, com fases de acalmia e outras agudas, as chamadas crises.
A pele é extremamente sensível e reativa, muito seca, descamativa, com uma comichão constante indescritível, com lesões de tanto coçar e crostas, suscetível a infeções bacterianas, e que chega a deitar líquido (o chamado exsudado).
Ao longo da minha caminhada na doença, aprendi que cada caso de dermatite atópica é um caso, pois as características e manifestações da pele, ainda que com traços comuns, variam ligeiramente de pessoa para pessoa, assim como os tratamentos, as “soluções”. O que para uma pessoa funciona, para outra pode ser absolutamente ineficaz ou até agravar a sintomatologia e vice-versa.
O drama de viver com a doença
É um processo de experimentação, de tentativa-erro, que requer muita força interior, muita paciência, muita resiliência.
Nestes já 35 anos de doença, tive momentos de verdadeiro suplício: cheguei a ter pele em carne viva, colada às roupas, a sair em lascas, a não conseguir abrir os olhos de tão inchadas e irritadas que tinha as pálpebras.
Diariamente tinha descamação que ficava espalhada nas roupas, nos lençóis e pela casa. Tinha uma comichão insuportável, à qual não conseguia não ceder, independentemente de ter a noção de que isso pioraria as lesões, porque é algo simplesmente incontrolável. É uma necessidade.
O simples ato de tomar banho, que é suposto ser prazeroso para a maioria das pessoas, foi, para mim, tantas vezes, uma verdadeira tortura.
Sentir a água a correr num corpo em ferida é uma dor só por si. E, no fim, termos de nos besuntar na tentativa de não piorar a secura da pele, com hidratantes que nos provocam ardor, é simplesmente indescritível.
Depois, ter, ainda, de pôr cremes específicos para cada zona da pele ou consoante o seu estado: emoliente, com cortisona, cicatrizante, antifúngico…é como preencher uma manta de retalhos.
São rotinas diárias de horas que ninguém sonha o quanto custam, o tempo que nos roubam, algo de que já nem nós próprios nos damos conta, de tão enraizadas que estão. Tudo na tentativa de manter o melhor estado possível da pele e tantas vezes sem sucesso.
Gasta-se imenso dinheiro em cremes e tratamentos e a maior parte deles não são comparticipados, apenas dedutíveis no IRS. Muitas pessoas não têm sequer capacidade financeira para os adquirir (nem apoio para tal), porque a doença não beneficia do apoio estatal reconhecido a outras doenças crónicas.
A tentativa de aliviar a dor
Algo gratuito, aconselhado pelos médicos, que sempre me ajudou muito foi a exposição solar. Talvez por isso adore o sol e procure apanhar um bocadinho sempre que posso, mesmo no inverno. Fazer atividades que promovam o relaxamento também ajuda, como yoga ou a meditação.
Com esta doença não é possível vestirmos qualquer roupa, de qualquer tecido: tem de ser tudo de algodão ou, em dias melhores, de um tecido o mais suave possível. É impensável ter etiquetas e calçar uns collants que não sejam de algodão, o que não é assim tão fácil de encontrar. Tem muito que se lhe diga. O mesmo em relação à roupa de cama, de banho, dos sofás. Enfim, de tudo aquilo com que a nossa pele tenha contacto.
Em situações de crise, que foram tantas que lhes perdi a conta, fiz fototerapia, um tratamento com raios ultravioleta, e tratamentos sistémicos com corticoides e/ou ciclosporina (utilizados, por exemplo, para a não rejeição de órgãos transplantados). Tentei tratamentos com muitas contraindicações e efeitos secundários, sujeitos a um controlo médico regular rigoroso.
O episódio mais marcante que tive foi um eczema herpético. Trata-se de uma emergência médica, em que o conhecido vírus do herpes invade o sistema imunitário debilitado pelas infeções a que a pele atópica está sujeita e prolifera. No meu caso, fiquei com a cara em carne viva, como se tivesse sido queimada, cheia de bolhas e tive de ser internada para diagnóstico e para tratamento endovenoso.
Foram as piores dores da minha vida, absolutamente excruciantes. Lembro-me de tomar banho e lavar a cara, tentando limpar as lesões, e de gritar com dor, com pedaços de pele do rosto a cair. Tive, inclusive de fazer um TAC cerebral para verificar se não havia comprometimento ocular, dada a proximidade das lesões à zona dos olhos.
Identificado o problema, foi uma semana de clausura em casa para tratamento com antiviral. Recordo-me de ter acontecido na época do Halloween e de ter pensado para mim que tinha uma máscara verdadeira, tal era a monstruosidade das lesões.
Felizmente recuperei, sem consequências ou marcas físicas. A que ficou foi psicológica, devido ao grande susto que apanhei. Cheguei a achar que podia não resistir, tal a gravidade da situação, o desconhecimento do que se passava e o medo de que se pudesse repetir.
Aprender a aceitar a dermatite atópica
Viver com dermatite atópica é viver na inconstância constante, na instabilidade de não saber como estaremos a cada momento. É deitarmo-nos bem e não sabermos como vamos acordar.
É viver a fazer tudo o que os médicos nos aconselham, “trinta por uma linha”, e ainda assim não ter resultados ou piorar e não saber sequer porquê.
Sou uma pessoa muito curiosa e muito lógica e, por isso, acho sempre que há uma explicação para tudo ou quase tudo, mas com esta doença aprendi que não é bem assim. Que podemos fazer exatamente o que fizemos num qualquer outro dia em que estávamos perfeitamente bem e, desta vez, ter uma reação diferente ou uma crise. Ainda que tenhamos os cuidados que sempre tivemos, isso não nos garante que não acontecerá uma reação indesejada, uma recaída.
É uma doença que nos limita e nos molda, forçosamente, para o bem e para o mal. Aquilo que para a generalidade das pessoas é algo absolutamente normal, como trabalhar, sair com amigos ou simplesmente ir ao supermercado, é, para alguém que vive com dermatite atópica, um verdadeiro desafio, quando a doença está mais exacerbada ou visível.
É ter vergonha de nos expormos, ter de lidar com olhares curiosos, perguntas indiscretas e, às vezes, comentários infelizes. É sermos obrigados a que outros nos vejam num estado em que nós próprios não nos queremos ver, mas, ao mesmo tempo, termos uma voz interior a dizer-nos que não somos menos por isso, que somos tão mais que isso.
É acordar várias vezes durante a noite a coçarmo-nos violentamente, por mais cremes que ponhamos, por mais anti-histamínicos que tomemos, é acordar cansada e ter de gerir o dia a dia com um défice de sono crónico e uma disposição não tão boa como a de quem consegue ter um sono reparador e não tem dores na pele.
É um massacre físico e emocional constante. Se, por um lado, a doença nos dá uma resiliência enorme e nos ensina a aguentar situações difíceis, a persistir apesar das dificuldades e a ter uma tolerância incrível à dor, física e emocional, por outro lado, também nos torna mais ansiosos, nos tira alegria de viver, otimismo e belisca a nossa autoestima.
Ninguém é de ferro. E enfrentar o espelho quando estamos em crise é avassalador. É ver a dor que sentimos refletida, o que nos causa, por si só, mais dor.
Chegamos a ter pena de nós próprias, é inevitável. Ainda que, ao mesmo tempo, também nos sintamos particularmente fortes por conseguirmos lidar com algo assim e superá-lo a cada momento.
Têm sido anos verdadeiramente difíceis. Aprendi a desejar ter apenas um pouco de normalidade, de paz, a querer estar minimamente bem. Um bem que é relativo, que é um estado pelo menos controlado, tolerável.
Uma reviravolta feliz
Felizmente, e contra todas as expectativas que não criei, com medo de as ver defraudadas, a minha realidade nesta doença mudou radicalmente desde o final de maio do ano passado.
Iniciei um tratamento, na altura ainda experimental, hoje já autorizado pelo Infarmed, com o “Dupilumab”. É um medicamento biológico, injetável, que administro, sozinha, de 15 em 15 dias, e que atua numa proteína envolvida na cadeia de reação inflamatória típica da pele atópica.
A minha vida mudou desde então. Descobri que não tinha qualidade de vida e não sabia, porque o estado em que vivia era o que me era familiar, mas a verdade é que é e pode ser tão, mas tão diferente.
Hoje, não sei o que são noites sem dormir, praticamente não tenho comichão, tenho a pele quase imaculada. Deito-me com a certeza de que vou acordar bem ou melhor ainda. Ainda que possa ter uma irritação pontual, o que é muito raro, rapidamente se desvanece ou é facilmente controlável.
Consigo usar roupas que jamais toleraria, ponho creme por cuidado e não por sentir necessidade. Tenho a pele lisa, como a de um bebé, e recuperei totalmente de verdadeiros sulcos que tinha na zona das mãos e que não havia meio de cicatrizarem. E, desta vez, a mudança não só é visível para mim como para todos os que me rodeiam. É absolutamente incrível.
Lembro-me de a minha mãe, que tanto sofria ao ver o meu sofrimento, me dizer “ainda vai aparecer uma cura para isso, vais ver, a ciência evolui tanto”, mas eu não conseguia acreditar. Estava habituada a viver assim, sem garantias de melhoria, com a consciência de ser uma doença crónica e sem cura.
O facto é que este novo tratamento surgiu e, não sendo uma cura da doença, para mim, é como se fosse. Sei que quando tiver de o suspender, por exemplo, para engravidar, os sintomas da doença provavelmente regressarão. Mas a realidade é que, neste momento, estou bem e tento apenas ser grata diariamente por isso porque não é algo garantido.
Atravessei todos estes meses sem uma única recaída, uma crise, progressivamente melhor até ficar quase como se nunca tivesse tido a doença, apenas e esporadicamente algum prurido na zona dos olhos, um dos únicos efeitos secundários que tive, mas que não é comparável ao que tinha antes por força própria da doença.
Há um antes e um depois do Dupilumab na minha vida, claramente. E espero que assim se mantenha.
O que desejo para todas as pessoas que têm dermatite atópica é que tenham acesso a um tratamento como este e que tenha tão bons resultados como teve comigo. Para que aqueles que dele não possam beneficiar ou que não sintam tantas melhorias, que possam ser compreendidos e apoiados nas várias vertentes da doença, ao nível laboral, familiar e de cuidados de saúde, incluindo a área da psicologia.
A família e os amigos têm um papel fundamental, de suporte básico, e eu tenho a sorte de ter tido o maior apoio, neste aspeto, e sou-lhes tão grata por isso, por sempre me terem feito sentir “normal”.
A grande maioria das pessoas tem por adquirido o bem-estar da pele, é um pressuposto da sua existência, salvo problemas pontuais a que qualquer um está sujeito. Um atópico vive na certeza do desconforto, que pode ser maior ou menor, e na incerteza de poder ficar pior ainda, a qualquer momento, com todas as implicações que isso tem na sua vida.
Felizmente, a divulgação e o consequente conhecimento da doença têm aumentado muito nos últimos tempos. Há uma maior compreensão social, mais investimento e integração dos doentes. Tal deve-se àqueles que sofrem com a doença, ao trabalho desenvolvido pela Associação Dermatite Atópica Portugal (Adermap) e aos investigadores e profissionais de saúde que diariamente mostram dedicação.
As doenças não se medem aos palmos e viver com dermatite atópica é de uma dificuldade tamanha que só aqueles que infelizmente a sentem na pele percebem verdadeiramente. Está longe de ser uma doença estética, é muito mais do que isso.