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Crónica. A infidelidade não começa na cama, mas na mente

Crónica. A infidelidade não começa na cama, mas na mente

O que leva um elemento do casal a trair? Porque é que casais felizes também traem? A compreensão da infidelidade não é uma forma de justificar, mas de melhor compreender, para melhor prevenir.

Por Ago. 20. 2025

A infidelidade é um tema que desperta curiosidade, indignação e dor. Contudo, seria redutor definir a infidelidade como falta de amor ou má índole de quem trai.

Na verdade, a infidelidade é uma janela que nos permite ter acesso à profundeza complexa dos relacionamentos. Observar a infidelidade e melhor compreendê-la à luz da ciência, permite aos casais melhor compreenderem o que poderá estar na sua base e, desta forma, prevenir algo que traz consigo uma capacidade absolutamente esmagadora e destrutiva do vínculo relacional.

Na verdade, sabemos hoje que a infidelidade envolve uma multiplicidade de fatores, uma mistura de biologia, psicologia, contexto social e relacional. E por isso mesmo podemos definir que a infidelidade não começa na cama, mas antes de tudo, na mente, no nosso cérebro.

Afinal, o que é a infidelidade?

Talvez seja importante definir infidelidade como todos os comportamentos que ultrapassam o acordo (implícito ou explicito) ou os limites da relação com o parceiro atual, ou seja, quando a circunstância da conduta não está contemplada no acordo existente entre casal.

Neste sentido, uma infidelidade corresponde a tudo aquilo que quebra o contrato entre estas duas pessoas, recordando-nos que este contrato e tudo o que nele cabe (o eu, o tu, o nós, o que está dentro, o que está fora, o que nos separa, o que nos aproxima, os terceiros elementos, os limites, etc.), poderá e deverá ser revisitado e renegociado ao longo de todo o ciclo de vida do casal. A forma como cada um olha para uma atitude, um comportamento, uma necessidade, um desejo, poderá ser diferente consoante a fase de vida de cada casal.

Podemos falar de alguns tipos de infidelidade:

Física: quando se verifica um envolvimento sexual fora da relação atual;

Emocional: quando se investe intimidade e afeto noutra pessoa que não o parceiro atual;

Virtual: quando se verificam interações eróticas online, incluindo pornografia ou mensagens sugestivas, com teor erótico ou sexual.

Como Esther Perel indica, atualmente podemos ter um caso extraconjugal deitados na cama ao lado das nossas pessoas parceiras.

A infidelidade envolve uma multiplicidade de fatores, uma mistura de biologia, psicologia, contexto social e relacional

Os 3 determinantes da infidelidade

A ciência vai-nos indicando 3 principais determinantes para o comportamento infiel. São eles:

O cérebro

A forma como as nossas hormonas funcionam, as emoções, o cérebro, poderá levar-nos, sob determinadas características, a comportamentos de infidelidade.

A psicologia

A mente que fomos desenvolvendo através das nossas experiências tornam-se numa espécie de impressão digital sobre a forma como pensamos o mundo, como o vivemos, como pensamos sobre o nosso self sexual ou romântico. Nem sempre quem trai está insatisfeito no relacionamento, pelo contrário.

Contudo, alguns fatores pessoais poderão entrar em cena perante determinadas circunstâncias:

Narcisismo e sentimento de merecimento – sentir-se merecedor e colocar as suas necessidades em primeiro lugar. “Eu posso, logo faço”;

Ausência de empatia – incapacidade ou dificuldade em colocar-se no lugar do outro; Idealização do outro e desvalorização do parceiro atual;

Impulsividade – Tomar importantes decisões, que trazem grandes consequências, quando o seu cérebro está alterado pelo adrenalina e pelo desejo de gratificação e recompensa; Procura por novidade, emoção e adrenalina; Necessidade de fugir de problemas pessoais ou da rotina.

A cultura

O ambiente e contexto à nossa volta, assim como as mensagens sobre sexo, amor e adultério que vamos integrando dentro de nós, constituem as nossas crenças ou opiniões sobre a infidelidade ou sobre o ser infiel.

O determinante ambiental ou contextual mais significativo consiste na possibilidade de podermos trair. Neste sentido, a ciência indica que quanto mais fácil é que aconteça (proporcionar-se contextualmente), mais o poderemos fazer.

Por norma, a infidelidade estaria associada aos três A’s – Affordable (acessível economicamente), Acessible (acessível contextualmente/proximidade), Anonymous (garantir o anonimato), – na forma como poderão moldar o comportamento adúltero.

O desejo como motor da infidelidade

O ser humano sente a necessidade de encontrar a resposta a dois impulsos absolutamente essenciais. Por um lado, o impulso de procurar novidade e excitação, e por outro lado, a necessidade de vínculo e de segurança.

A dopamina, enquanto neurotransmissor associado à recompensa e ao prazer, é ativada pela novidade, incluindo de novo parceiros sexuais. A oxitocina, conhecida como a “hormona do amor”, fortalece a ligação e o cuidado com quem já conhecemos.

Por norma, o nosso cérebro prioriza o vínculo (na verdade, um dos primeiros mecanismos para garantir a sobrevivência da nossa espécie), perante a aventura e novidade, exceto em algumas condições psicológicas e emocionais específicas:

  • Insatisfação emocional: sentir-se invisível, não valorizado ou desconectado;
  • Insatisfação sexual: rotina, ausência de desejo ou incompatibilidade;
  • Necessidade de novidade: busca de adrenalina, curiosidade, ego;
  • Cenários de vida: crises existenciais, luto, mudanças de vida;
  • Modelos familiares: padrões aprendidos ou normalizados na infância;
  • Oportunidade e contexto: viagens, redes sociais, álcool, proximidade com colegas de trabalho.

Muitas vezes pensamos que uma infidelidade tem mais a ver com uma química sexual, mas na verdade, poderá na prática envolver muito mais o depositar na terceira pessoa (com uma manifestada intensidade) os nossos anseios, as nossas esperanças, as nossas fantasias, os nossos medos, as nossas emoções à flor da pele, os lugares da nossa imaginação e, portanto, as nossas representações mentais que ativam a excitação e consequentemente o desejo!

Mais do que com sexo, a infidelidade tem mais a ver com a nossa mente e com tudo o que a ativa nesse sentido!

O determinante ambiental ou contextual mais significativo consiste na possibilidade de podermos trair.

O viés da emoção

Um estudo desenvolvido por Artur Aron e Donald Dutto, em 1974, procurou explorar e compreender a natureza da atração sexual, ficando conhecido pela Experiência da Ponte.

Neste estudo, recrutaram alguns homens para atravessar duas pontes diferentes: uma ponte suspensa, alta e instável e uma outra ponte baixa e estável. Pediu-se a uma mulher atraente que abordasse os homens após a travessia da ponte, oferecendo o seu contacto telefónico.

Verificou-se que os homens que atravessaram a ponte alta demonstraram maior probabilidade de ligar para a mulher, concluindo-se que o seu cérebro tinha confundido a excitação da travessia da ponte com a atração sexual pela mulher.

O estudo sugeriu que a interpretação das nossas emoções pode ser influenciada pelo contexto e atribuições erróneas acerca da excitação. Ou seja, que o nosso cérebro poderá confundir diferentes fontes de excitação.

Deste modo, o desejo tem muito mais a ver com as nossas emoções, as representações mentais que fazemos do outro e de nós mesmos. Ou seja, a nossa excitação, emoção ou desejo estariam muito menos relacionados com a terceira pessoa do que com a forma como a nossa mente funciona internamente.

Quando conhecemos um novo alguém, podemos sentir uma emoção intensa de adrenalina e entusiasmo, que poderá estar diretamente ligada à adrenalina do proibido do que está ali a acontecer no encontro, com a incerteza de a terceira pessoa nos desejar ou não, dado o impacto da música vibrante que está a passar no contexto e incendeia o ambiente, do cocktail exótico que pedimos e que não é usual bebermos, das esquinas novas do bar ou restaurante que ainda não conhecemos.

Nesse momento, temos a tendência em atribuir a excitação ao novo alguém e não à novidade e excitação que o contexto novo e desconhecido provoca em nós, principalmente quando, depois, comparamos com a pessoa parceira que já conhecemos de cor.

É neste contexto que temos a tendência de agigantar e idealizar a emoção intensa da novidade (o desejo intenso que estamos a sentir, aumentado com o facto de ser proibido), a idealização da terceira pessoa e a desvalorização da nossa pessoa parceira (a visão sobre a pessoa parceira pode tornar-se distorcida, enquanto o novo surge perfeito e ideal).

Nesse momento, é como se conhecêssemos um novo alguém em cima da ponte alta e instável do estudo de Artur Aron e Donald Dutto.

A emoção à flor da pele de tudo o que está a acontecer naquele momento alimenta o cérebro de químicos de novidade e recompensa (dopamina), e faz o nosso coração disparar com maior velocidade, o que depois acabamos por designar como paixão.

Ou seja, a representação mental que fazemos da paixão e que acaba por entrar em conflito com o nosso vínculo atual e que podemos acabar por ceder, transgredir ou não responder com os limites que seriam tão necessários de ser colocados nesse momento!

O que podemos aprender com isto?

A infidelidade é um dos acontecimentos mais dolorosos que um casal pode enfrentar. Quebra a confiança e coloca dúvidas profundas sobre o amor, deixando feridas que podem demorar a cicatrizar. Muitos imaginam que a traição é o início do fim de uma relação. Mas, na verdade, ela costuma ser mais um sintoma do que a causa do afastamento.

Não é a doença em si, mas o sinal de que algo não está bem (individualmente ou relacionalmente). Muitas vezes pode haver amor, mais ainda assim, existir distância emocional, frustração ou um vazio que nem sempre se sabe nomear. Em alguns casos, a infidelidade surge como uma tentativa (desajeitada e dolorosa) de suprir o que falta. Por outro lado, vivemos numa época em que a promessa do ter tudo e da satisfação imediata está sempre presente, o que pode gerar frustração quando a relação não oferece, a todo o momento, a intensidade ou a novidade.

Desta forma, diante de uma situação de infidelidade ou mesmo no lugar de prevenção, é essencial os casais refletirem sobre o que a situação revela sobre o relacionamento, sobre cada um dos elementos ou sobre as necessidades que consideram estar a ser ou não respondidas na sua relação.

Exige, deste modo, uma comunicação honesta e disponível (criar espaço para falar sobre fantasias, insatisfações e desejos sem medo de julgamento); que o casal esteja atento e não se esqueça de cultivar a intimidade emocional e sexual (em consulta observamos, muitas vezes, desleixo diante da intimidade do casal), perceber sinais de desconexão para que não se transformem em muros; reequilibrar a necessidade de vínculo com a necessidade de novidade e aventura dentro do relacionamento com a pessoa parceira (o que deixaram de fazer, que novas aventuras poderão trazer para dentro da relação, o que estimula a mesma dopamina que a novidade externa provocaria); expressar reconhecimento e afeto regularmente (pequenos gestos reduzem a sensação de invisibilidade que pode alimentar a infidelidade); entender o seu padrão de vinculação (a ciência indica que pessoas com padrão inseguro ansioso e evitante poderão apresentar maiores dificuldades em manter uma intimidade estável e salutar); e trabalhar questões pessoais (como depressão, ansiedade, baixa autoestima, etc).

Por outro lado, os casais deverão nas suas conversas honestas refletir sobre a gestão de riscos e limites, ou seja, em como poderão limitar situações de risco (ambientes com muita intimidade física ou emocional com terceiros); procurar ser realistas sobre situações que poderão verificar-se tentadoras (compreender que ninguém é totalmente imune ajuda a reconhecer que cada elemento deverá manter a sua vigilância e limites adequados); proteger a privacidade do casal (guardar para o relacionamento algumas confidências que não se compartilham com terceiros); ou definir a utilização consciente da tecnologia (procurar definir limites claros sobre redes sociais, apps ou mensagens com terceiros, o que é aceitável ou não na sua relação).

Quando olhamos pela janela da infidelidade e vemos tudo o que se encontra numa caso extraconjugal, como o cultivo constante do desejo, uma atenção plena, romantismo, disponibilidade, curiosidade, abertura, jovialidade, partilha de sonhos, projetos, afeto e paixão, percebemos que estes ingredientes são na verdade tudo o que precisamos de cultivar diariamente nas nossas relações para estas prosperarem continuamente e não haver espaço para uma infidelidade.

E que tal (re)começarmos por aqui?

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