
Upcycling: estas marcas portuguesas criam roupas a partir de lixo têxtil
Enquanto um dos setores mais poluentes do mundo, a indústria da moda vê-se a braços dados com um desafio: arranjar alternativas inovadoras e criativas para combater o desperdício. Aqui, apresentamos-lhe algumas soluções encontradas, em especial, no território português.
Comecemos pelos números: estima-se que sejam necessários 2700 litros de água doce, ou seja, o correspondente à quantidade média que uma pessoa bebe em dois anos e meio, para fabricar uma T-shirt de algodão. Chocante? Ainda não terminámos.
Em 2020, foram necessários nove metros cúbicos de água, 400 metros quadrados de terra e 391 quilogramas de matérias-primas para fornecer vestuário e calçado a cada cidadão da União Europeia. Isto equivale a aproximadamente 90 banhos de dez minutos, um campo de basquetebol e quatro frigoríficos. Valores brutais que colocam o setor têxtil na posição de terceira maior fonte de degradação da água e de utilização dos solos, de acordo com os dados partilhados no site do Parlamento Europeu.
É, por isso, crucial tomar ações concretas para fazer face ao impacto ambiental. Com isso em mente – e sabendo que, na Europa, as pessoas consomem em média cerca de 26 quilogramas de produtos têxteis e deitam fora cerca de 11 quilogramas, todos os anos -, a UE traçou um conjunto de estratégias que visam atingir uma economia circular até 20250, através da redução de resíduos têxteis, aumento do seu ciclo de vida e promoção da reciclagem.
Algumas marcas seguem já este caminho em direção à sustentabilidade, de forma inovadora e consciente. A Cura by the Sea é um desses exemplos.
“Tudo começou quando a Joana [Faustino, co-fundadora da marca de roupa] se fartou de ver várias caixas na despensa do hotel [You and the Sea, do qual é proprietária, em conjunto com as suas duas irmãs] cheias de lençóis de grande qualidade, de 100% algodão, que tinham pequenas manchas ou rasgões e, portanto, não podiam ser utilizadas no hotel”, recorda Arjan Kuil, co-fundador da insígnia. “Eram demasiado bons para desperdiçar”.
Desta forma, convidaram alguns artistas a dar-lhes uma nova vida, ainda antes de imaginarem que, um dia, a Cura by the Sea seria um projeto sólido. De velhos lençóis, esquecidos num qualquer canto do edifício, nasceram camisas “com técnicas artesanais únicas”, de edição limitada, que o co-proprietário diz terem sido “um sucesso”. Depois, não pensaram duas vezes antes de decidirem lançar a marca e vendê-la online, fazendo-a crescer a olhos vistos.
Até à data, conseguiram “colecionar e guardar aproximadamente 600 lençóis de dois hotéis”, a partir dos quais esperam criar “mais de 1500 camisas”, anuncia Arjan. Para já, foram produzidas “entre 200 e 400” peças, pelo que ainda há muito material com o qual podem ser criativos, seja a fazer mais camisas ou uniformes para restaurantes, o mais recente passo dado pela Cura by the Sea.
O que a insígnia faz – transformar velhos lençóis em novos itens de vestuário – é apenas uma das formas de tornar a moda (um pouco) mais verde. Ao processo dá-se o nome de upcycling, que a Sociedade Ponto Verde define como a “transformação de materiais para reincorporação num produto com maior ou igual valor acrescentado”. E existem, cada vez mais, opções no mercado que partem deste conceito para agitar este que é um dos sectores mais poluentes do mundo.
Do enxoval para o guarda-roupa
Béhen é uma delas. Depois de um mestrado em Londres, onde foi incentivada a questionar o seu papel enquanto designer e “criar sempre com um propósito”, e um estágio numa marca Fair Trade, na Índia, Joana Duarte, a fundadora, regressou a Portugal com vontade de “criar um projeto ligado à dimensão da criação com impacto”.
“Ainda não sabia exatamente sobre o que seria esse projeto, mas foi no meio dos enxovais e bordados da minha avó e de ouvir muitas vezes que ‘ia tudo para o lixo, porque já ninguém queria’ que surgiu [a marca], de forma muito ingénua e sem um plano propriamente definido, mas com uma enorme vontade de mudar a perceção da nova geração sobre estes materiais e técnicas artesanais”, conta a fundadora.
Em pouco tempo, essa estrutura apareceu e, em março de 2020, apresentou a sua primeira coleção na plataforma Lab da ModaLisboa, captando, de imediato, a atenção da imprensa internacional.
Os holofotes não se desligaram e, por consequência, no ano seguinte, foi distinguida no concurso The International Sustainable Fashion Design, graças ao seu percurso pautado pela união entre tradição e modernidade, que se traduz em peças que buscam no passado a visão do futuro.
Resgatados, inicialmente, das arcas da avó e o enxoval da família, e, atualmente, envolvendo “arcas e gavetas de muitas outras pessoas, de norte a sul do país”, que chegam até si através de “feiras, armazéns antigos ou simplesmente de pessoas que sabem” o que fazem e “oferecem peças dos seus enxovais”, os materiais ganham uma nova vida em coordenados únicos e cool.
Perguntamos-lhe, desta forma, se se sente, de algum modo, limitada durante o processo de criação. “Sim e não”, responde, esclarecendo: “Não posso simplesmente encomendar 100 metros de tecido quando trabalho com materiais antigos ou técnicas como a tecelagem manual, mas acredito que, para uma criatividade sustentável e sustentada, os limites são importantes. Obriga a olhar com mais atenção para os materiais e a encontrar soluções fora da caixa, mas é um exercício constante de adaptação”.
É-o também devido à imprevisibilidade dos materiais que lhe chegam às mãos, não só no que diz respeito à quantidade, como qualidade ou estado de conservação.
“Há materiais que ficam meses à espera de ‘encontrar a peça certa’ ou o projeto ideal”, nota. “Estamos sempre a experimentar, a fazer testes, a errar. Há muitos tecidos que não conseguimos aproveitar por estarem demasiado danificados, mas é uma questão de dar tempo e tentar pensar noutra forma de os usar”, adiciona.
“Existe também todo um lado de restauro. Aprendi muito com a minha avó e com a minha mãe sobre como tratar tecidos antigos desde segredos para tirar manchas até formas de reparar pequenos buracos ou imperfeições”, completa.
Recetividade da moda sustentável
Este tipo de peças exige, então, “um cliente que entenda o valor de algo único ou limitado”. “Procuram peças mais exclusivas e a limitação de quantidade torna-se uma mais-valia, não uma dificuldade”, repara Joana Duarte.
Contudo, tem consciência de que “há países onde este tipo de trabalho ainda não é visto como algo de luxo, precisamente por já ter tido uma vida anterior”, embora existam também “há muitos contextos onde essa ideia já foi ultrapassada, e onde se reconhece o valor que estas peças trazem em termos de história”.
Em Portugal, no entanto, há ainda um longo caminho a percorrer para alargar mentalidades relativamente à moda sustentável, considera Joana Campos Silva, consultora de comunicação e moda circular.
“Os consumidores veem benefícios em comprar produtos ultrabaratos que, além de não respeitarem o direto dos trabalhadores, trazem consigo químicos nocivos proibidos na Europa”, frisa, lembrando uma grande reportagem do canal privado SIC, que dava conta que chegam a território nacional, “por dia, cerca de 40 aviões com artigos de plataformas como a Shein e Temu”.
“Acreditamos que a sustentabilidade é sobre dar muitos pequenos passos, pelo que podemos dizer que existimos para inspirar e motivar”, declara Arjan Kuil, cofundador da Cura by the Sea.
E é este o esforço – de gerar curiosidade, apresentar-se como uma boa alternativa e criar esperança no futuro – que diferentes marcas, de uma forma ou doutra, têm feito para mostrar que vale a pena caminhar nesta direção.
Benedita Formosinho, fundadora da insígnia homónima, por exemplo, vende novelos de fio reciclado ecológico, além de peças de roupa sustentáveis e intemporais, de forma a “contribuir para uma informação consciente da comunidade em geral, sentindo nas suas mãos este poder transformador”, revela.
“Consideramos que, assim, podemos também fomentar o dar asas à imaginação e criatividade de cada um, além de contar a história deste fio em cada cinta do novelo”, acrescenta.
Fundadora, designer e CEO Benedita Formosinho e Perpétua Formosinho, responsável pela sustentabilidade e pelo desenvolvimento estratégico da marca
O resultado é fruto do projeto de circularidade implementado para colocar um ponto final no desperdício gerado na produção, que inclui “pequenos retalhos de tecidos resultantes do corte das peças”, muitos deles de “materiais nobres, manta alentejana, burel, fibras orgânicas…”, afirma.
“Os desperdícios são enviados do nosso atelier e dos nossos parceiros de confeção para a empresa de reciclagem, quando se atinge um volume viável para a sua introdução no processo fabril, procedem à separação, reciclagem, cardação e fiação. Novos cones de fio são usados no desenvolvimento de novas peças, dando assim uma nova vida ao nosso “lixo” para entrar novamente nas nossas escolhas”, clarifica a mente por trás da marca.
Alternativas criativas
No entanto, não é só de desperdícios têxteis que se faz novo vestuário. “A Indústria portuguesa é muito inovadora e tem soluções múltiplas para os diferentes desafios, seja para dar resposta ao consumo excessivo de água, seja pela pegadas emissões GEE ou no combate ao resíduo têxtil”, destaca Joana Campos Silva.
“O Be@t (projeto de bio economia da têxtil) e a Fibernamics estão a fazer grandes apostas em novos materiais e há inúmeras soluções. Temos fibra que vem da casca da banana, ananás, leite e até do pêlo de cão. E há hoje acabamentos têxteis, que parecem pele, que vêm de resíduos de outras indústrias, como a cortiça, café ou a baga da uva”, salienta.
A Loewe e a H&M são algumas das referências com um alcance internacional que investiram neste campo. A primeira, em conjunto com a Pyratex – especialista na produção de tecidos de base natural, derivados de recursos biológicos renováveis e reciclados -, anunciou, em junho deste ano, que iria aproveitar as cascas de laranjas para dar vida às suas novas coleções. Já a sueca de fast fashion, introduziu, em 2019, seda de laranja, pele de ananás e espuma de algas na linha Conscious Exclusive.
Questiona-se como é possível ou como funciona? Fátima Esteves, diretora do curso Engenharia Têxtil, na Universidade do Minho, elucida-nos: “A utilização de resíduos vegetais (agro-alimentares, por exemplo), nomeadamente as cascas de frutos, restos vegetais da produção florestal, papel, cartão, palhas da produção de cereais, têm como objetivo a utilização da sua base de celulose para a produção de fibras artificiais celulósicas, como a viscose ou a liocel. Também os materiais têxteis pós-consumo podem ser usados como fonte de celulose para produzir estas fibras que, habitualmente, são produzidas a partir da madeira (normalmente, eucalipto). Deste modo, tudo o que seja resíduo de base vegetal (celulósica) pode ser utilizado na produção destas fibras”.
Além disso, “estes resíduos vegetais também estão a ser utilizados como fonte de corantes naturais. É o caso da casca de laranja, das folhas de oliveira, por exemplo”. Ainda assim, “sua aplicação continua a ser residual, dadas a características destes compostos: menos resistentes a certos fatores do que os sintéticos”, lamenta a profissional.
Arrojadas e inovadoras, as soluções para combater o ritmo desenfreado da indústria da moda multiplicam-se. E é necessário que aconteça. “Os recursos do nosso planeta não são infinitos. O ciclo de crescimento desenfreado que vemos atualmente em muitos setores tem de parar. E precisamos de abrandar. Precisamos de ser criativos no uso do que temos”, remata Arjan Kuil.