Saúde

"Entrei no consultório e a médica disse: 'A Joana não tem vagina'"

Chama-se Joana Freire e nasceu sem vagina. A causa? É portadora da síndrome Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser, responsável por certas anomalias do aparelho reprodutor feminino. Com uma história de vida inspiradora, partilha a sua caminhada de desânimos e conquistas.

Untitled-7 Untitled-7 Untitled-7
© D.R
Escrito por
Mar. 30, 2019

Durante nove meses, a minha família esperou ansiosamente por mim. Todos desejavam que viesse bem, com muita saúde e ‘perfeitinha!’. Nasci no dia 5 de agosto de 1986, correu tudo bem e aparentemente era perfeitinha.

Cresci, passei por todas as fases que qualquer criança passa até que aos 17 anos e, por ser já ‘crescida’, apercebi-me de que algo não estava bem.

Na escola acompanhei as minhas colegas a tornarem-se mulheres, a falarem de pensos, de tampões e de dores menstruais. A chegada da menstruação é efetivamente um marco, dizem que é quando nos tornamos mulheres. Mas esta afirmação não me faz muito sentido.

Em 2004, fui ao ginecologista pela primeira vez, porque sentia que algo não podia estar bem. Após várias tentativas, não conseguia ter relações e começava a ser estranho a ausência de menstruação. No dia da consulta, e como era a primeira vez, a minha mãe foi comigo, mas eu quis entrar sozinha, para estar mais à vontade para falar sobre a minha intimidade (a minha mãe não sabia deste meu insucesso sexual). Mas passados alguns minutos, tive de a chamar, naquele momento só a queria junto a mim.

Assustada, entrou no consultório, sentou-se e a médica repete: “A Joana não tem vagina”. As lágrimas escorriam-me pelo rosto, a minha mãe mal conseguiu reagir, as suas palavras apenas foram: “ela foi sempre à pediatra, nunca me disseram nada.” Aquela consulta desencadeou outras tantas até saber o que se passava comigo, com o meu corpo.

Sou portadora da síndrome MRKH, designada por Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser, o nome dos homens que descobriram e estudaram a minha condição.

No geral, o síndrome só se descobre na adolescência pelo insucesso do ato sexual, ausência da menstruação e dores abdominais cíclicas

A MRKH corresponde a uma anomalia congénita do aparelho reprodutor feminino, que consiste na ausência total ou parcial do canal vaginal e útero. Os ovários funcionam, mas não menstruo, logo, tenho características normais do sexo feminino e a olho nu nada indica a doença que tenho. Estatisticamente, afeta uma em cada 5000 mulheres.

As causas ainda não são totalmente conhecidas, sabe-se apenas que ocorrem alterações em certa altura do desenvolvimento fetal, que bloqueiam o crescimento dos órgãos lesados. Há quem defenda que acontece devido a fatores ambientais, como a poluição, radiações, entre outros.

No geral, o síndrome só se descobre na adolescência pelo insucesso do ato sexual, ausência da menstruação e dores abdominais cíclicas.

Para além da ausência do útero e vagina, podia ainda ter malformações renais, ou mesmo ausência de um rim, podia também ter perda de audição, deformações nas vértebras lombares e sagradas, malformações de costelas, ausência de dedos (ou a sua fusão) e doença cardíaca congénita.

Mais um “murro no estômago”

Depois desta descoberta começaram as consultas, análises ao sangue, exames e mais exames. Nesta intensa correria, acabei por chegar às  mãos da Dra. AP, que na altura trabalhava no Hospital Garcia de Orta, em Almada, onde fiz mais análises ao sangue e aos cromossomas, que estavam normais (cariótipo 46,XX).

Já o relatório da ressonância magnética não era tão animador. A minha mãe e irmã acompanharam-me à consulta. Já conhecíamos parte do diagnóstico, mas só depois de realizar os exames todos é que ficamos a saber o que se passava ao certo. Foi nesse dia que me informaram que eu não conseguia ter filhos. Hoje corrijo para “Não consigo gerar uma criança”. Foi mais um ‘murro’ no estômago.

testemunho joana freire

 

“Fisicamente (ganhei uma vagina!) e psicologicamente, a operação trouxe-me segurança, autoestima e esperança. Finalmente era (em parte) igual às outras mulheres. Ser diferente, custa. Não posso dizer que não.”

Naquele momento ficámos as três sem reação, sem palavras. Saímos do consultório num silêncio absoluto. Lembro-me de o corredor ser grande, de entrar muita luz, e enquanto caminhava em lágrimas, pensava em como iria ser a minha vida: ‘porquê a mim? Será que alguém me vai aceitar?

Depois dessa consulta, a Dra. AP encaminhou-me para o Dr. GDM, cirurgião plástico do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. O objetivo era continuar a ser seguida e operada lá. O processo começou em fevereiro de 2004 e terminou a 30 de dezembro desse ano, dia em que fui operada para fazer a reconstrução vaginal.

A técnica que usaram no meu caso foi vaginoplastia de Wilflingseder, que consiste em tirar alguns centímetros de intestino delgado, que depois de tratado foi envolvido num molde, onde posteriormente foi colocado no canal vaginal criado. A operação correu bem, o pós-operatório foi mais complicado.

Estive 13 dias sem me mexer, deitada e na mesma posição. Após ter alta, tive de continuar a usar o molde 24 horas por dia durante os primeiros meses. O risco de não andar com ele era demasiado grande, e tinha de garantir que o canal não descia, porque havia essa probabilidade. Depois disso, só precisava de o usar à noite. Nesta transição, troquei o molde para um mais rijo. Era muito desconfortável. Felizmente já não o uso.

Tentei sempre ter uma visão positiva, ou seja, encarar um problema como um desafio, pensar como é que o vou minimizar ou conseguir lidar com ele sem ser de uma forma penosa

A operação foi importante, mudou a minha vida

Fisicamente (ganhei uma vagina!) e psicologicamente – apesar de nunca me ter sentido menos mulher –, a operação trouxe-me segurança, autoestima e esperança. Finalmente era (em parte) igual às outras mulheres. Ser diferente, custa. Não posso dizer que não. Apesar de hoje, com 32 anos, estar mais forte emocionalmente e consciente da minha diferença, vai custar sempre.

Aprendi que a partilha nos ajuda e leva ao encontro de pessoas extraordinárias. As histórias ganham rostos, encontros com desconhecidas que rapidamente passam a ser companheiras de viagem e assim se vai caminhando pelo mundo da (in)fertilidade.

Penso muitas vezes que ainda era uma criança quando recebi a notícia. Ao longo dos anos fui aprendendo a gerir os sentimentos, as situações e as notícias menos boas. Tentei sempre ter uma visão positiva, ou seja, encarar um problema como um desafio, pensar como é que o vou minimizar ou conseguir lidar com ele sem ser de uma forma penosa.

Nós temos muito dentro de nós e quando estamos expostos a situações que nos magoam, nos deixam tristes, descobrimos “instrumentos” poderosos. Houve uma altura do processo que tive de recorrer a uma psicóloga, senti que não estava a aguentar, então pensei, tenho de cuidar de mim, tenho de me fortalecer. Decidi ir à psicóloga, fazia ioga e meditação, e estas três coisas foram a minha medicação, ajudaram-me a encarar o futuro com outra firmeza.

Às voltas com a legislação

A nível social, não sofri com a pressão de ter filhos, até porque ninguém à minha volta ia perguntar por filhos com 17 ou 18 anos Na altura estava com um rapaz que queria ter filhos, e isso custava-me, porque ambos sabíamos que eu não podia. Sinto que no fundo ele nunca soube aceitar a minha situação. E lembro-me que este foi o meu primeiro contacto com a rejeição.

Passados alguns anos, já com 28, comecei a pensar no futuro, nas alternativas para poder ter filhos. Já tinha ouvido falar da gestação de substituição, mas na altura não quis informar-me, só queria ser operada e ter a minha vagina. Anos mais tarde soube que havia um projeto sobre esta matéria na Assembleia da República, mas estava parado.

Inicialmente com a Maria, outra mulher MRKH, começámos a pedir audiências junto dos grupos parlamentares e, ao mesmo tempo, entrei em contacto com a Associação Portuguesa de Fertilidade, que foi uma grande ajuda em todo o processo.

O dia 13 de maio de 2016 será para sempre um dia histórico, porque veio dar esperança a todas as mulheres e casais que têm o sonho de ser pais. A partir daquele dia, podíamos alcançar o nosso direito de constituir família no nosso próprio país.

O primeiro e maior passo tinha sido dado, que foi conseguirmos a aprovação da gestação de substituição. Esse dia foi uma agitação, com os amigos a ligarem, os meios a quererem saber mais… foi um dia emocionante! Sonhámos, planeámos, tudo parecia estar a correr bem.

Depois começaram as entraves. Numa primeira instância, o veto do Presidente da República, depois, o envio da lei por parte do CDS e alguns deputados do PSD para o Tribunal Constitucional, que não considerou a lei inconstitucional mas, ainda assim, levantou algumas questões que vieram atrasar e suspender os processos em curso. O BE mostrou-se disponível a melhorar o projeto que tinham apresentado.

No dia da votação, em dezembro de 2018, o projeto acabou por descer (sem votação) à especialidade para ser trabalhado para que todos os deputados votem a favor. Neste momento aguardam-se desenvolvimentos, o grupo de trabalho já está criado e em breve vai pegar novamente no tema da gestação de substituição.

Há uma luz que nunca se apaga

Estes contratempos trazem-me desânimo. A sensação que tenho é que nada está seguro, que a resposta ainda não está ao meu alcance. Nos momentos em que me sinto em baixo, deprimida, triste e desmotivada, por ver tantas injustiças, é muito importante ter alguém ao meu lado, que me apoia, abrace, dê a mão e ajude a ultrapassar os dias menos bons.

Tenho a sorte de ter uma pessoa que desde o primeiro dia me aceitou e acreditou em mim. A minha história e do Tico, meu namorado, é muito engraçada. Meti-me com ele no comboio, em 2010, mas nunca mais o vi. Em 2016, convido-o para um café, e desde esse dia não o larguei mais. Ele nunca questionou a minha impossibilidade de não conseguir gerar um bebé. Ele faz-me sentir normal, e o peso de não poder gerar vida não é um problema.

Queremos constituir a nossa família, mas tendo em consideração a minha condição, vamos precisar do apoio de outra mulher. Se tudo correr bem, essa mulher será a minha irmã. Ser mãe vai para além de gerar uma criança durante nove meses.

Tem sido uma jornada muito interessante e curiosa, com muito trabalho interior. Aprendi que na vida nada é um dado adquirido, que a seu tempo o que é nosso vem ao nosso encontro.

Joana Freire lançou recentemente o a(m)arte, um blogue que nasce da vontade de contar a sua história, como mulher portadora da síndrome Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser, e não só. Quer ser o ponto de encontro de várias histórias e de informação útil para ajudar todas as mulheres, em especial as que na sua viagem levam o peso da (in)fertilidade.


Leia também o testemunho de Catarina Mira, portadora de endometriose e adenomiose.

Últimos