Carreira

Tem vários interesses e não sabe que carreira seguir? É provável que seja multipotencial

Se nunca conseguiu responder à pergunta “o que queres ser quando fores grande?” e continua sem saber o que fazer por ter muitos interesses, então é uma multipotencial e o mais provável é não ter apenas uma profissão. A solução? Abraçar as suas múltiplas paixões.

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Tem vários interesses e não sabe que carreira seguir? É provável que seja multipotencial Tem vários interesses e não sabe que carreira seguir? É provável que seja multipotencial
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Rita Caetano
Escrito por
Dez. 12, 2022

Sabe o que têm em comum Eleanor Roosevelt, Benjamin Franklin, Leonardo Da Vinci, Julia Child, Geena Davis, Cleópatra, Aristóteles, René Descartes, Galileu Galilei e Isaac Newton? São todos multipotenciais, ou seja, desenvolveram uma série de competências ao mais alto nível, como diria o psicólogo R.H. Frederickson, que, no início dos anos 70 do século passado, cunhou o termo.

Por outras palavras, são pessoas com muitos interesses e ocupações criativas que não se cingem a uma só vocação, tendo sido bem-sucedidas em várias áreas. Isto significa que, apesar de ainda vivermos numa sociedade que dá primazia aos especialistas, também há espaço para os multipotenciais e que eles também escreveram páginas da nossa História.

Emilie Wapnick, a norte-americana que trouxe o tema para a ribalta, em 2015, na TED Talk intitulada Porque alguns de nós não tem uma única verdadeira vocação, vai mais longe e afirma sem qualquer hesitação que o mundo precisa dos multipotenciais.

Um perigo chamado tédio

Emilie Wapnick, autora premiada, sabe do que fala. Ela própria é uma multipotencial e, na TED Talk referida, contou que nunca conseguiu responder à pergunta “o que queres ser quando cresceres?”, e não era porque não gostasse de nada, bem pelo contrário, era porque tinha muitos interesses.

Gostava de Inglês, de Matemática, de Artes e ainda fazia sites e tocava numa banda. Assim, não é de estranhar que tenha estudado Música, Produção Cinematográfica e Direito.

“Observava um padrão: interessava-me por uma área, mergulhava nela, envolvia-me totalmente e conseguia sair-me bem. Contudo, algum tempo depois, sentia-me entediada”, disse.

Tentava contrariar a sua natureza multipotencial por causa do tempo, do esforço e, algumas vezes, do dinheiro despendidos, mas, quando aparecia outro interesse, a história repetia-se.

Apesar do sucesso que ia tendo, essa sua forma de ser criava-lhe ansiedade. Por um lado, não conseguia perceber como transformar a multipotencialidade numa carreira e pensava que a única solução era negar as suas paixões e aceitar o tédio.

Por outro, julgava que algo de errado se passava, receava não ter foco ou até estar a fazer autossabotagem. Depois de dissipadas essas dúvidas, começou a tirar proveito da sua multipotencialidade.

Foi para ajudar os outros como ela que fundou a Puttylike, da qual é diretora criativa, e escreveu o livro How to Be Everything (Como ser tudo, em tradução literal), da Harper Collins.

Uma questão cultural

Se se revê de alguma forma na história de Emilie Wapnick e o facto de ter vários interesses lhe causa ansiedade, a fundadora da Puttylike aconselha que faça para si própria a pergunta que ela gostaria de ter feito na altura em que se sentia desajustada da sociedade.

“Onde aprendeu a associar as palavras errado ou anormal ao facto de fazer várias coisas?”. A resposta é simples: na cultura instituída.

A ideia de ter um foco específico é amplamente romantizada, com visíveis desvantagens para os multipotenciais. Se olharmos para a História, nem sempre foi assim. No Renascimento, a multipotencialidade era incentivada e os já citados Leonardo da Vinci e Galileu Galilei são disso exemplo.

É por este motivo que um dos sinónimos de multipotencial é, além de pessoa eclética, pessoa da Renascença.

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Apesar de ser muito fácil olhar para a multipotencialidade como uma fraqueza, Emile Wapnick apela para que se olhe para os pontos fortes das pessoas com várias vocações: capacidade de sintetizar ideias, rápida aprendizagem e adaptabilidade.

A primeira é a habilidade para combinar uma ou mais áreas e criar algo de novo dessa junção; a segunda acontece porque, quando um multipotencial se interessa por algo, dedica-se profundamente a essa coisa e, como já começou diversas vezes, não tem medo do desconhecido, além de trazer sempre consigo tudo o que aprendeu nas várias áreas por si exploradas.

Por fim, a adaptabilidade pode ser caracterizada como ser capaz de ser o que dá mais jeito em determinada situação. Um multipotencial é valioso porque faz bem o seu trabalho e consegue assumir várias tarefas.

Quer saber se é multipotencial? No site puttylike.com encontra um teste que lhe dará a resposta a essa dúvida

Pensamento global

A coach Alexandra Vinagre também vê “a adaptabilidade e a flexibilidade como as principais vantagens da multipotencialidade. Estas pessoas, além de aprenderem rápido, têm também a capacidade de se adaptar a várias coisas”.

Mas não é o único aspeto que a coach realça: “Alguém que tem vários interesses e desenvolve várias competências e carreiras diferentes tem também a vantagem de ter uma visão mais abrangente do mundo”, afirma.

“Ao não se especializar numa só área, tem mais experiências com culturas, pessoas e temas diferentes, o que lhe dá um pensamento mais global. Essa bagagem não tem como não trazer consigo criatividade para as tarefas que desenvolvem”, acrescenta.

Outro pormenor que Alexandra Vinagre destaca é o facto de os multipotenciais poderem ser inspiradores para quem trabalha com eles e “não por serem melhores ou piores do que os outros, mas, porque geralmente são apaixonadas pelo que fazem e isso pode gerar uma onda positiva nos projetos onde estão envolvidos”.

Em vez de questionar ‘por que tenho tantos interesses?’, é pensar ‘como é que a multipotencialidade pode ser vantajosa’ – Alexandra Vinagre, coach

Era dos especialistas

Todas essas vantagens não apagam o facto de ainda vivermos numa era de especialistas.

“Hoje contratam-se especialistas e paga-se mais a essas pessoas. Nas empresas, a competição é tal que quem se distingue é quem tem melhores resultados a curto prazo e isso acontece quando as pessoas já têm experiência na área e na função para as quais foram contratadas”, avisa Jorge M. Fonseca, partner da consultora George Carreer Change.

Procurado por pessoas que querem ter um novo desafio profissional, ou porque estão insatisfeitas ou porque foram despedidas, o seu primeiro conselho é sempre apostar nas áreas em crescimento, em que se sintam bem e nas quais já tenham experiência.

“Quando se quer mudar de área, há que contar com uma redução de salário, devido à falta de experiência. Alguém que trabalhou 20 anos na banca e que resolve ser cozinheiro tem de perceber que, se entrar num restaurante, vai ganhar menos”, refere.

O próprio passou por isso. “Fui vendedor de informática e, como vendia em grande escala, ganhava bem. Quando passei para a área do executive search, tinha oito anos de experiência em vendas, mas na nova profissão não valia nada. Mas resolvi arriscar mesmo com um quarto do salário que tinha anteriormente”, confessa.

Jorge M. Fonseca diz que “há muitas pessoas que saem do armário profissional muito tarde na vida. Muitas foram para uma profissão por pressão familiar, outras simplesmente deixaram de gostar do que faziam e não investiram na sua carreira”.

© unsplash

Abordagens ao trabalho

Não existe uma carreira ideal para um multipotencial, mas existem quatro modelos de trabalho que podem ajudar a uma maior realização e a fugir do tédio:

1. Abordagem do abraço de grupo: escolher um trabalho ou negócio multifacetado. Isso pode significar trabalhar numa startup ou numa organização com visão de futuro e que queira que se envolva nas várias facetas do negócio; ou administrar uma empresa com essa mesma visão;

2. A abordagem Slash: ter vários empregos, negócios ou fluxos de receita distintos. Este modelo funciona melhor para quem gosta de alternar com frequência entre assuntos radicalmente diferentes;

3. Abordagem Einstein: ter um trabalho ou negócio de que goste q.b., que lhe dê estabilidade, e que lhe permita ter tempo e energia criativa para explorar os seus interesses noutras atividades. O seu nome deve-se a Albert Einstein ter trabalhado num escritório de patentes para pagar as contas, o que lhe deixava muito tempo livre para trabalhar nas suas teorias;

4. Abordagem sequencial: mergulhar numa área durante vários anos para depois mudar para outra área. Esta abordagem funciona melhor para os multipotenciais que preferem concentrar-se numa coisa de cada vez e mergulhar fundo antes de passar para a próxima.

Fonte: adaptado de puttylike.com
Se, até agora, temos um mercado muito focado em encontrar especialistas, vai ter de começar a haver a abertura para encaixar quem não é especialista – Alexandra Vinagre, coach

Não há melhores ou piores

Alexandra Vinagre concorda que estamos numa sociedade que dá mais relevância aos especialistas, mas a sua experiência pessoal em várias organizações, especialmente nas estrangeiras, diz-lhe que isso está a mudar e menciona o relatório O Futuro do Trabalho do World Economic Forum para explicar o seu ponto de vista.

“Metade da força de trabalho vai ter que se requalificar até 2025 e, quando isso acontecer, a flexibilidade e adaptabilidade serão valorizadas”, afirma. Para a coach, a questão de quem é melhor, especialista ou multipotencial, não se coloca, “é simplesmente perceber que cada um de nós pode seguir o seu traço de personalidade e as suas curiosidades”.

“Se, até agora, temos um mercado muito focado em encontrar especialistas, vai ter de começar a haver a abertura para encaixar quem não é especialista. Equipas que juntem especialistas e multipotenciais trarão melhores resultados”, adiciona.

Os primeiros aprofundam e implementam as ideias; os segundos trazem ideias e a criatividade. Neste âmbito, Emile Wapnick aconselha a que todas as pessoas abracem a sua maneira de funcionar, seja ela qual for.

“Se for um especialista convicto, então, especialize-se, pois, só assim, dará o melhor de si. Se for um multipontecial, abrace as suas várias paixões e siga a sua curiosidade, dentro daquela toca do coelho”, afirma.

É normal que as novas gerações estejam mais bem preparadas para explorar as suas diferentes vocações –  Sophie Seromenho, psicóloga

Os desafios

Ao pensar nos multipotencias com os quais já trabalhou, Alexandra Vinagre aponta como principal desafio daqueles, “o receio de não se sentirem acolhidos numa sociedade que valoriza os especialistas e a indecisão que daí pode advir”.

“Será que estou a fazer a coisa certa?” é uma pergunta que ouve muitas vezes.

Na gestão da carreira, o mais importante, garante a coach, é que “os multipotenciais percebam que algumas das suas escolhas não são falta de personalidade, mas sim fruto de serem mais curiosos do que outros. Têm de ver isso como algo que podem explorar e potenciar. Caso contrário, irão ocultar as suas necessidades” e, hoje em dia, a realização pessoal e profissional é uma necessidade.

“A geração dos nossos avós e a dos nossos pais foram educadas para procurar a segurança e a estabilidade. Agora, com ambas garantidas, os millennials e a geração posterior sentem-se livres para explorar o seu potencial e as suas competências para atingir a realização pessoal”, explica Sophie Seromenho, psicóloga clínica e autora do livro Não É Loucura, É Ansiedade.

“São mais ativos a procurar coisas novas. Até porque, a carreira para a vida acabou, e esta ideia acaba por nos abrir mais portas em vez de ficarmos reduzidos a uma profissão”, acrescenta.

Por tudo isto, “é normal que as gerações mais novas estejam mais bem preparadas para explorar a sua multipotencialidade”.

Superpoderes

As aptidões que fazem os multipotenciais brilharem e os torna particularmente adequados para resolver problemas complexos e multifatoriais.

  • Capacidade de sintetizar ideias;
  • Aprendizagem rápida;
  • Adaptabilidade;
  • Pensamento virado para o panorama geral;
  • Capacidade de se relacionar com diferentes tipos de pessoas, “linguagens” e modos de pensamento.
Fonte: adaptado de puttylike.com.

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Denominador comum

Ter uma profissão de que se goste é muito importante para o bem-estar.

“Se pensarmos que um dia tem 24 horas e, dessas, seis a nove são para dormir, as oito que passamos no trabalho ocupam a maior parte do dia. Portanto, se foram passadas a fazer algo que não nos satisfaz, é muito penoso. Quando assim é, passa-se o dia a olhar para o relógio e os níveis de produtividade não serão os melhores”, avisa Sophie Seromenho, que aconselha quem se sentir assim a analisar quais os motivos.

No caso de um multipotencial, as razões passam não só pelas suas múltiplas paixões, mas também devido ao cargo que ocupam ou à insatisfação com o clima organizacional.

Sair da empresa onde está é sempre uma hipótese, mas a psicóloga clínica recomenda também “tentar evoluir dentro da empresa e mudar de funções e isso passa por uma conversa com os recursos humanos e com a chefia”.

Alexandra Vinagre afirma que os hobbies também são muito importantes para os multipotenciais, bem como reservar tempo para aprender e ler sobre o que lhes interessa.

Relevante ainda, continua a coach, é encontrarem um denominador comum nas suas áreas de interesse.

“Em vez de questionar “por que tenho tantos interesses?”, é pensar “como é que a multipotencialidade pode ser vantajosa para aquilo que estou a fazer”, sublinha, acrescentando que “um mutipotencial vive uma vida mais alinhada com o que lhe traz felicidade, algo que toda a gente quer”.

Para terminar, aconselha que “mesmo quem não tem esse traço deve aprender que todos podemos ser várias coisas”.

Solucionar problemas

É multipotencial e isso causa-lhe ansiedade e faz com que tenha dificuldade em tomar decisões? Está na hora de aprender a resolver problemas.

1. Definir claramente o problema, dificuldade, ou dilema que está a incomodá-la. Isto pode, por exemplo, envolver definir a sua natureza e identificar os seus objetivos e os obstáculos que a impedem de os alcançar;

2. Gerar soluções alternativas para superar os obstáculos identificados. Há algumas perguntas que ajudam nesta tarefa: Consegue pensa em alguma maneira de fazer com que este problema deixe de o ser?; O que faço para que continue a ser um problema?; Se um amigo estivesse com um problema semelhante, o que lhe recomendaria fazer? Qual seria a pior forma e a melhor de resolver este problema?;

3. Tomar uma decisão deliberada, após analisar bem as vantagens e desvantagens das estratégias identificadas;

4. Implementar a solução escolhida e monitorizar o resultado.

Fonte: Não É Loucura, É Ansiedade, Sophie Seromenho.
A versão original deste artigo foi publicada na revista Saber Viver nº267, setembro de 2022.

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